Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Relatório, outro


Dia 21 de Julho de 2010, oito horas da manhã. Coimbra em versão cinza e fria. Acordo cedo para tratar de assuntos domésticos. É dia de peritagem do meu carro, na sequência de leve acidente na baixa da cidade. Recordo-o. Parei numa passadeira, ao Arnado, aí pelas dez e meia do dia 19. Uma senhora idosa atravessava lentamente a rua. Atrás de mim, um condutor distraído não parou a tempo. Senti a pancada na traseira do carro. A senhora idosa desapareceu, sem curiosidade pelo estrondo ou pelos danos na chapa automóvel. Declaração amigável. Assinaturas resignadas, gestos aborrecidos, rostos tristes. Burocracia, longa espera na seguradora, tempo tão perdido.
Adiante. Sigo agora pela cidade natal, aproveitando o estar acordado desusadamente cedo. Esboço o relatório sobre a licença sabática, à mesa do Café O Moinho. A tese está escrita, falta revê-la, apurá-la, emagrecê-la (se for capaz), confiná-la ao aspecto legalmente imposto. Vou, portanto, andar amarrado a Júlio Dinis ainda por Agosto.
Reflicto gratamente. Fui abençoado com esta possibilidade de, durante um inteiro ano lectivo, ser pago pelo Estado para ler e escrever. Vou lembrar-me com saudades, no futuro, desse calendário maravilhoso de solidão boa, passado no aconchego da minha cozinha ribeirapenense, da minha sala coimbrinha, de bibliotecas municipais-escolares-universitárias. Já me despeço, com dor, do privilégio de andar pelas livrarias e pela internet a comprar livros. De, pela manhã e, sobretudo, pela tarde e noite me ocupar com leituras e escritas.
Ficaram cerca de vinte cadernos de notas e talvez mil ficheiros com e sobre fontes, ideias, sugestões, planos, redacção de capítulos. [Pelo meio, sem que o Estado tenha a ver com isso, pude escrever poesia, teatro, narrativa, crónicas.]
Entre Setembro de 2009 e, digamos, Abril de 2010, senti-me dono absoluto do meu Tempo. A mortalidade só me regressou em Maio, quando ouvi a M.P. lamentar-se da curta duração do 3.º período e do final iminente do ano lectivo.
Este 2010 foi o ano do nascimento do blogue Muito Mar (e não é impossível que venha a ser o ano da sua morte). Inaugurei-o decerto com o fito de, em jeito de recreio íntimo, sair um pouco deste académico jugo a que profissionalmente me sujeitei. Agora, olho para ele como uma espécie de Café Amizade, interessante ponto de encontro de amigos, vizinhos, conhecidos. Também um arquivo, claro, para certos dizeres mais ou menos voláteis (sobre mim e o mundo à volta).
Já depois do almoço, abro o computador. O Fujitsu tem sido um fiel companheiro de lida. Começo a escrever o relatório.
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A minha literatura, em boa verdade, resume-se desde sempre a este exercício. Vivo e faço relatórios, vivo e faço relatórios, vivo e faço relatórios. Foi para isto que aprendi a ler e a escrever, em Outubro de 1970: para (me) relatar, para (me) dizer.

Coimbra, 21 de Julho de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

1 comentário:

dromofilo disse...

E muito bem, meu amigo, muito bem...