Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (7)




Lugar do Caminho

Quase findo o jantar, à horinha de pedir café & conta, o meu amigo Francisco Botelho confidenciou-me: “Tenho leucemia.” Fora uma refeição divertida, aquela, até ao momento da brutal revelação: ele aduzira ideias para um livro, planos para a dinamização do roteiro camiliano em Ribeira de Pena, projectos turístico-culturais – e eu, a cada convite seu para colaborar, tinha dito que contasse (sempre) comigo.
Vinte anos antes, quando cheguei à vila transmontana de Ribeira de Pena, os colegas locais perguntavam-me com frequência: “Então? Já fizeste amigos aqui, Joaquim Jorge?” Eu dava-lhes uma resposta honesta: “Já me dou com bastantes pessoas. Mas um amigo, convenhamos, leva uns dez anos a fazer!”
Na verdade, foi preciso menos tempo para me aproximar do Francisco Botelho: primeiro, comecei a colaborar com o jornal que dirigia, o “Ecos da Ribeira”, escrevendo uma croniqueta, genericamente chamada “Lugar do Caminho” (que era o nome do meu endereço verdadeiro nesse primeiro ano de vida ribeirapenense); depois, ele quis agradecer-me pessoalmente os escritos e eu descobri, na sua pessoa, um magnífico cidadão do mundo, cultíssimo, generoso, cheio de sentido de humor, um pouco snob na elegância do vestir e do falar. Era também vagamente descendente de Camilo Castelo Branco e, talvez por isso (mas não só por isso), um dos mais inteligentes e sábios cultores da literatura camiliana que pude conhecer.
Camilo Castelo Branco casou-se, pela primeira vez, em Ribeira de Pena, com uma rapariga do lugar de Frúme, Joaquina de França. Embora tenha vivido pouco tempo nesta terra, muitas das suas novelas reproduzem memórias de lugares, gentes, costumes, lendas e eventos que o escritor então conheceu. Ciente do capital cultural e turístico que esse facto biográfico encerrava para o concelho ribeirapenense, o Francisco Botelho estudou, falou e escreveu muito sobre o assunto - e, entre outras iniciativas, veio a conceber um roteiro literário camiliano de altíssimo interesse para a divulgação da vila e para a dinâmica celebração da obra do escritor. Rapidamente, esse seu projecto ganhou adeptos, potenciou visitas, cresceu em alcance e dinâmica.
Sobreveio a doença, raios partissem a sorte. O Francisco Botelho soube que lhe restavam entre um e oito-dez anos de vida. O que faz um homem nestas circunstâncias? Eis: incrementou os jantares camilianos (cheguei a participar num deles, encarnando a figura do pai de Joaquina de França, num sketch que escrevi, a pedido do meu amigo); participou em muitos encontros literários; fez palestras; desempenhou o papel de cicerone nos roteiros que inventara. Mas fez mais, ainda: formou novos cicerones, entre jovens académicos locais, no pressuposto de que a morte de um indivíduo não poderia destruir-lhe um projecto tão válido como aquele.
A dita morte veio nem um ano depois da nossa conversa ao jantar. Nos anos seguintes, estive várias vezes com alunos meus em Ribeira de Pena, em visitas de estudo. E vi no terreno alguns formandos do Francisco Botelho, perorando com digno rigor sobre lugares, personagens e obras da literatura camiliana. Não tinham o brilho original do Mestre, é certo; mas eram, de certa divina forma, a sua amável continuidade.
Retenho desta evocação, para além da intransmissível saudade, uma lição existencial: a de que o nosso tempo tem o valor que lhe dermos. Não se trata apenas, sublinho, daquele clichê latino-modernista do “carpe diem”. Neste caso, significa sobretudo o dever do ser humano para com o Futuro: o meu amigo Francisco Botelho não deixou que a sua morte significasse o fim de um projecto formoso, ligado à (sua) terra e à figura de Camilo Castelo Branco.
Um grande poeta irlandês, Seamus Heaney, põe em questão – em certo poema de que nunca mais me esqueci – se não deveríamos, em vez de nos interrogarmos sobre o facto de haver ou não vida depois da morte, preocupar-nos com o inverso, isto é, se há ou não, bem vistas as coisas, vida antes da morte. Amen.

Ribeira de Pena, 21 de Setembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 23-09-2015. As fotos – datadas de 2007 – ilustram um dos jantares camilianos que o Francisco Botelho organizou.]

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (6)

O sentido da urgência



Em Agosto de 1970, na barrinha da praia de Mira, enquanto as mulheres da família dispunham o farnel sobre a mesa e os homens bebiam cerveja ou babavam a testosterona perante a anatomia estival de turistas bronzeadas e ruidosas, eu tentei, pela primeira vez, nadar de costas. Aprendera já a técnica e conseguira, numa aula da primária que tivemos num tanque (amovível) do Loreto, dar três ou quatro braçadas. 
De maneira que, sem aviso, entrei na água doce e pus em prática os preceitos estudados. O sucesso do exercício superou as minhas melhores expectativas (como se costuma dizer): em movimentos sincopados, regulares, competentes, senti o corpo afastar-se da margem, flutuando como um colchão de borracha. Ao fim de alguns minutos, cansado, pude perceber – naquela periclitante horizontalidade que era – a distância considerável a que estava já da minha família. Afligi-me e quis inverter a marcha. Não sabia como fazê-lo, mas já vira o modo como os remadores procediam para conduzir os barcos: suspendiam o movimento dos remos num dos lados e remavam exclusivamente para o lado pretendido. Adoptei essa técnica também, mas esqueci-me de continuar a bater os pés. E dei por mim submerso, à beira de morrer. Desesperado, mexi exageradamente os braços e as pernas. Queria sair dali. Queria salvar-me. Ao sentir o chão sob os meus pés, tentei impulsionar-me até à superfície para poder gritar por socorro. Consegui-o por umas três vezes, mas depois senti-me sem força e resignei-me. Recordo a tristeza que me invadiu, mas também uma sensação superveniente de serenidade absoluta que, à luz da catequese do Bairro do Brinca, talvez fosse a antecâmara do céu (ao invés de mui biológica reacção à falta de oxigénio).
De súbito, uma mão forte devolveu-me a este mundo. Era o meu pai. Alguém me ouvira pedir por socorro e ele, sem hesitar, lançara-se à água para salvar o filho. Adito-vos um pormenor: o meu pai mal sabia nadar, nunca o vi senão dar uns mergulhos fugidios e atabalhoados no mar de Mira. Mas esqueceu-se, ali, das suas insuficiências e foi-me buscar à morte. Alguns familiares disseram, depois, que ele – em terra - vomitou tanta água quanto o filho. 
Lembrei-me deste episódio durante uma conversa sobre os resultados da guerra que, nos últimos tempos, procuraram abrigo na Europa. Bem sei que os recursos dos países são limitados, que há problemas associados à entrada em massa de (i)migrantes, que há leis para observar e respeitar. Bem sei, por outro lado, que os próprios migrantes, ao demandar a Europa, se expõem a sofrimentos e perigos colossais. Mas eu nunca me esqueci daquela vez em que estive, no fundo da barrinha de Mira, à porta do fim. Nem do meu pai que, ignorando a sua própria segurança, foi salvar-me, sem pensar senão na urgência de agir.


Ribeira de Pena, 14 de Setembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 16-09-2015.]

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (5)

Certas palavras certas

Há uns 35 anos, a direção do Clube de Futebol União de Coimbra informou-me de que seria uns dos 3 juniores da equipa a subir a sénior. Tratava-se de uma altíssima distinção e eu andei durante todo aquele dia de Junho numa doce nuvem de felicidade. Felicidade quase perfeita, devo acrescentar. Porquê “quase”? Porque um dos meus colegas de equipa, frustrado com a sua exclusão dos eleitos, vociferou publicamente a indignação: achava que a decisão da direção fora errada e injusta. Eu, como lhe admirava o talento e sinceramente o estimava como amigo, quis dar-lhe uma palavra de consolo. Mas a minha atitude pareceu ofendê-lo (ainda mais): “Não leves a mal, pá, mas tu, em minha opinião, não passas de um óptimo jogador!” – disse-me ele.
Percebi que o tom do discurso era zangado, mas não deixei de agradecer (sem ironia) o adjectivo escolhido para o meu valor futebolístico: “óptimo”. Ele estranhou o meu agradecimento e reiterou a sua opinião: “Não leves a mal, a sério, mas é o que eu penso de ti: és apenas um óptimo jogador!”
Voltei a agradecer-lhe, sorrindo, e ele pareceu ficar fora de si. Rosnou entre dentes: “Não gozes, pá, estou a falar a sério!”
Até que alguém lhe perguntou: “O que é que queres dizer com óptimo, pá?” E a explicação veio: mui diversamente de superlativo absoluto sintético de “bom”, ele via naquele vocábulo um sinónimo de “mais ou menos”, “razoável”, “sofrível”.
Muito cedo aprendi o poder que há em saber e dominar as palavras. Em as articular com a competência e a oportunidade adequadas. Em as conhecer muitas e bem. Em as ordenar na gramática certa, no ritmo certo, ao serviço da retórica querida e necessária.
No romance Mares do Sul, de M. V. Montálban fala-se de um homem cuja importância se mede objectivamente pelo enorme volume de léxico que conhecia e utilizava em seu quotidiano. Em A honra perdida de Katharina Blum, de Heinrich Böll, encontramos o desconforto da protagonista face à corrupção que os seus depoimentos sofrem: os inspectores policiais trocam-lhe o substantivo “impertinências” [de certa personagem masculina, que ela abomina] por “ternuras”, traindo o sentido fundamental do enunciado; ou o adjectivo “bondosa” [aplicado a certa senhora que a ajudara] por “amável”, reduzindo a carga afectiva da descrição feita.
A minha professora primária ensinou-nos, aí por volta de 1972, que o sentido das palavras poderia, muitas vezes, explicar-se pelo contexto. Um dia, dei com um texto que falava da melancolia de certa personagem. Eu não conhecia, à época, a palavra melancolia. O contexto dizia-me que a palavra significava, ali, o mesmo que tristeza. Mas a docente, nessa ocasião, houve por bem explicar-me que, no caso da melancolia, se tratava de uma tristeza diferente, outra, misteriosa, que nem sempre tinha uma causa física, concreta, visível, conhecida.
E eu pude confirmar, nesse dia, que a minha tristeza secreta e profunda não bem era uma tristeza comum. Era, é melancolia - este eterno Outono em que, com breves interrupções, sempre vivi.

Ribeira de Pena, 06 de Setembro de 2015.
[Esta crónica foi publicada no jornal O Ribatejo, edição de 10-09-2015.]

Escrito


Escrevo do bom silêncio contra os silêncios maus.

Ribeira de Pena, 09 de Setembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto MP]

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (4)

Bem vistas as coisas


Sou professor de Português e Francês na Escola pública. Cumpro programas, planificações, horários, ordens. Não é sempre fácil nem gratificante. Mas a minha missão vai secretamente além dessa cartilha: quero oferecer a cada aluno o melhor da minha essencial humanidade. E gosto de pensar que, à minha maneira, os ensino a olhar para o mundo e a vida. Não necessariamente a ver, porque isso já não depende tanto de mim.
Há trinta e um anos, a minha filha nasceu com a amável mania da curiosidade. É essa, como se sabe, uma condição relativamente comum entre as crianças, ponto de partida – aliás – para a obtenção de preciosos conhecimentos.
A minha mulher e eu gostávamos muito de ver a miúda, aí pelos seus cinco-seis anos, em seu ofício observador do mundo, atenta a pormenores de um rosto, de uma rua, de um prédio, de um automóvel, do mar de Mira. Ela tinha o hábito de franzir o nariz enquanto observava o que observava – e eu, encantado, achava-a parecida com um coelho (de Lewis Carroll, atenção!, o das maravilhas verdadeiras).

Aos dez anos, o médico descobriu que a nossa filha sofria de miopia, razão (afinal) para aquela careta engraçada no durante de suas aventuras olhadoras: a menina semicerrava os olhos e franzia o narizito apenas porque queria fixar-se nos pormenores a ver.
Lembro-me de ela, já com óculos, ficar extasiada perante aquela festa de cor e vida que era um jardim próximo de nossa casa. E de se ter saído com qualquer coisa deste género: - Ó pá, agora percebo como vocês viam! É tudo tão claro e tão bonito! 
Eu, já vo-lo disse, sou professor de língua e literatura.      Gosto de pensar na minha profissão como um ramo da - digamos assim - oftalmologia poética. Quero dizer: uma luta contra a miopia. Uma luta contra as vistas curtas,

Coimbra, 01 de Setembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no jornal O Ribatejo, na edição de 03-08-2015.]

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Memória da menina mesma que faz hoje 31 anos



Na sala era já adormecida
A menina no sofá, com a cadela
Ainda não dormindo, à espera
De os pais da menina lá estendida
A levarem ao quarto seu (e dela)
Segundo a rotina percebida.

O pai até à cama carregava
A menina. E a mãe abria
Os lençóis. A cadela saltava
Para os pés da cama e adormecia
Cúmplice dos mundos em que entrava
Em sonhos que a menina ali tecia.

Durante a noite, os pais da princesa
Vinham ao quarto confirmar
A inteira paz do sono e a beleza
Da querida cria. E suspirar
Por não ser eterna esta leveza
E tão frágil ser o humano lar.

Coimbra, 02 de Setembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho

ZONA DE PERECÍVEIS (3)

Bolsa de Agosto

Passei o mês de Agosto em Coimbra, minha pátria natal. Acumulo este prazer filial com a praia, aqui a 40 quilómetros, pelo que muitas vezes viajei, nas últimas semanas, até à Tocha. Apesar da felicidade das férias, nunca consigo estar completamente em paz, tão profunda é a noção de que o tempo bom – mais do que o mau – passa tão celeremente. Ganhei, aliás, o hábito de, a cada ida à praia, trazer para casa uma concha, e de no seu interior inscrever a data da sua recolha: faço por acreditar que ali guardarei essas horas amáveis na companhia do mar.
Durante o mês de Agosto, sinto ainda mais em mim essa urgência de existir que poetas e emigrantes tão bem conhecem. Com a disciplina dos aflitos, habituei-me a deixar preparado, a cada noite, no terceiro degrau do meu duplex coimbrinha, o saco da praia: toalha, chinelos, peças de fruta, água, livro, caderno, esferográfica. E, acreditai, o método ajudou-me a optimizar horas preciosas.
No dia 24 de Agosto, cumpri a rotina do dito & amado Verão. Pelas dez da manhã, levantei-me, fiz a rápida higiene matinal (rosto, dentes, barba) e desci as escadas. Por misteriosa distracção, ou por confiança exagerada na minha capacidade de locomoção às escuras, prescindi de accionar o interruptor da luz daquele corredor descendente. Esquecido do saco colocado no antepenúltimo degrau, não o divisando em tempo útil, tropecei miseravelmente e caí de costas. Levei uns dois minutos a reerguer-me, dorido e confuso, gemendo lamentos e insultos à sorte.
Perdida a praia, coloquei gelo sobre a área magoada e, no entretanto do tratamento, liguei a televisão. Foi aí que soube, pelos vários canais de informação, de um dia terrível nas bolsas da Ásia, da Europa e dos Estados Unidos, com o valor das acções a cair de forma abrupta e torrencial. Um especialista financeiro conjecturava – salvo erro na Sic Notícias – sobre prováveis causas para o fenómeno. Lembro-me que referiu, logo a abrir o discurso, o abrandamento da economia chinesa. Mas acrescentou que estas situações resultam também de factores imponderáveis (que transformam em caos o que, há instantes, parecia harmonia e ordem) e, muitas vezes, de alguma confiança exagerada dos investidores.
Ouvi-o com moderado interesse, cheio de dores nas costas. Mas, com tantos locutores a falar de quedas - do Nasdaq, do Dow Jones ou do PSI 20 -, não deixei de notar o facto de a nossa existência doméstica ser, em boa verdade, uma vívida alegoria da política, das finanças e da vida em geral. (Alegoria – confirmar nos dicionários – é um encandeamento de metáforas.)


Coimbra, 27 de Agosto de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no jornal O Ribatejo, edição de 27-08-2015.]

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Leitura com febre


Aos 11 de Agosto de 2015, releio contos do Le Clézio, um digno Nobel da Literatura. A história que dá nome ao livro é “A Febre” e centra-se sobretudo na ideia de que estamos (sempre) a morrer, a caminho da degradação e do Nada. Já me esquecera do facto de ter recebido este volume, no longínquo ano de 2009 (!), directamente das mãos do meu Amigo Conceição. Na página 3, há quatro linhas manuscritas - “Coimbra 2009 / Para o Joaquim “Poeta” / Do Amigo / Conceição”. Ele morreu no ano passado, a 8 de Julho. Dói-me muito que ele não esteja aqui. Nunca apaguei da minha lista o seu número de telemóvel. E, regressando a Le Clézio, tudo bate certo, afinal, sendo certo (infelizmente) o mesmo que trágico.

PS: À minha frente, antes desse consabido fim a haver, está o belo mar da Tocha. Ora, o Presente é ainda, visto daqui, um presente!

Praia da Tochas, 11 de Agosto de 2015.

Joaquim Jorge Carvalho

sábado, 8 de agosto de 2015

Devolução da infância (quadra ao jeito popular)


Fui à praia da Tocha e fabriquei, quase sem pensar, uma quadrinha sobre um reencontro muito adiado. No regresso, vim a cantá-la no carro com a música de "Samaritana", esse antiquíssimo fado de Coimbra. La voilà:

Levei à praia a velhice
E a praia por eu lá estar
Devolveu-me a meninice
Em forma de areia e mar.

Tocha, 07 de Agosto de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://rotadabairrada.pt.]

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (2)

Parábola da urgência

Há aquele tempo em que nos sentimos imortais, não é? Acordamos, todos os dias, para um novo dia, e nenhum dia é o último. Outorgamo-nos secretamente o direito à permanência ilimitada. Habitamos nada menos que a plenitude. Acreditamos que nenhum dia é repetido, embora – se o quisermos – tudo seja repetível. E, não obstante o vago susto de algumas mortes (ou migrações semelhantes), nem sequer desconfiamos da cínica verdade que nos governa – a de o tempo ser emprestado, de vivermos a prazo.
Cruzei-me há dias com um amigo antigo. Daqueles dois ou três que, com sorte, nos é dado descobrir em cinquenta anos. Há uns seis meses que não o via. Cumprimentei-o de fugida, porque tinha pressa (questões de mercearia ligadas a carro e casa). Mas prometi-lhe um telefonema “em breve”. À noite, recordando aquele encontro desperdiçado, uma vaga neura de remorso ensombrou-me o jantar.
Num dominó de lembranças, viajei até àquele dia em que não telefonei ao meu Pai, incumprindo a promessa feita, e depois até àquele domingo em que ele não atendeu a minha chamada, e depois até àquela manhã de sábado em que o Emanuel (meu irmão) me telefonou e disse, “O Pai morreu”, chorando como um menino.
Viajei também até àquele mês de Maio de 2010, quando telefonei para o meu sogro, o Mestre João (dito “Mestre” em atenção, antes de mais, à sua carreira na construção civil, depois em reconhecimento da sua faiscante sabedoria) e o informei do nosso encontro a haver, muito em breve, na Madeira. Sabendo-o doente, eu vencera o medo de andar de avião e decidira, nesse ano, acompanhar a minha mulher na viagem à sua ilha natal. O Mestre João gargalhou, feliz com a notícia, mas quis logo saber a data exacta da nossa chegada. Disse-lha: 29 de Julho. Após uns segundos, ouvi-o murmurar em tom preocupado: “Não sei se lá chego…” Ralhei com ele: que diabo de pessimismo, logo ele que era um homem forte, ainda haveríamos de nos encontrar muitas vezes, etc.
A meio de Junho, o meu sogro foi internado. A sua saúde esvaziava-se como um balão cansado. Temendo o pior, a minha mulher foi para a Madeira mais cedo. Dela fui sabendo que o Mestre João piorara, melhorara, piorara de novo, e que deixara de comunicar com o mundo, e que respirava por uma máscara, e que, enfim, por ali jazia sem esperança. Cheguei à ilha, como previsto, a 29 de Julho. Só no dia seguinte o vi, finalmente, num pequeno quarto do Hospital Nélio Mendonça onde havia três camas (uma delas ainda – ou já - vazia). A minha mulher acariciou-lhe as mãos e o rosto, passou-lhe um pano húmido pelos lábios muito secos, falou com ele (como se ele a pudesse ouvir), disse-lhe que eu já chegara. Mantive sempre um cobarde silêncio, não conseguindo senão olhar fixamente para aquele apagamento do Mestre amigo. Ele resfolegava, como um atleta correndo para a meta (ou então como alguém fugindo de um perigo próximo e mortal). À saída, garanti à família toda, sem convicção: “Ele ainda acorda, vão ver!”
Nessa mesma tarde, enquanto dolentemente caminhávamos por Machico, rente ao mar, o telefone tocou e a minha cunhada disse: “Morreu.” Com a idade (aí vai um clichê), aprendemos a distinguir o essencial do acessório. A perceber o que Eugénio de Andrade quis dizer com isso de ser “urgente o amor”. Ou por que razão Alexandre O’Neill queria abraçar-se à sua (pontual) amada “contra a morte”. 
O final desta crónica sou eu a conversar, ainda ontem, num Café familiar em Coimbra, com o meu amigo Rui Candeias, à vista de cerveja e de tremoços sobre a mesa, reflectindo-resmungando-rindo. Sem pressas, notai, porque era urgente estarmos ali.

Coimbra, 04 de Agosto de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Crónica publicada no semanário O RIBATEJO, edição de 06 de Agosto de 2015.]



ZONA DE PERECÍVEIS (1)

O valor da metáfora
A metáfora, como eu a entendo, é a cósmica tentativa de articular a verdade com o verbo humano. Radica numa espécie de consciência do défice da linguagem normal, e na concomitante necessidade (urgência até) de criar modos de dizer o que, existindo, não se explica facilmente, normalmente. Um dia, em viagem de automóvel, à conversa com a minha filha, percebi isto muito bem.
Ela tinha, então, quatro anos. Íamos buscar a minha mulher, que trabalhava a quarenta quilómetros da nossa residência. Para entreter a monotonia das rectas, eu ia falando, contando histórias, questionando-a. A miúda respondia com a simplicidade (de modos e de vocabulário) que a sua pouca idade explica. A certa altura, perguntei-lhe se gostava de mim.
Ela respondeu: «Gosto.»
Perguntei-lhe se também gostava da mãe. Ela disse: «Também.»
Levantei a fasquia da dificuldade e perguntei-lhe se gostava mais da mãe ou do pai. A miúda levou mais tempo a responder, mas desenrascou-se bem: «Gosto dos dois.»
Prossegui a entrevista, complexificando a conversa, já talvez adivinhando a sua desistência iminente: «Quanto é que gostas de mim?»
Ela, cada vez mais embaraçada, foi ainda capaz de se exprimir: «Muito.»
Temi pela minha filha, tão à beira de um esgotamento lexical, mas arrisquei ainda: «Muito, quanto?»
Caiu então um mui espaçado silêncio sobre a noite. A menina decerto sentia a resposta, mas não havia (em seu pobre vocabulário de infante) palavras para dizer o que inteiramente sentia. 
E nós passávamos enfim por Cantanhede, a caminho da vila de Febres, quando ela, interrompendo silêncio e breu, apontou para o maior edifício à vista e exclamou: «Gosto de ti aquela casa toda!»
Entendeis? A minha filha tinha descoberto a metáfora e oferecera-ma.

ADENDA
Inicio, com honra e gosto, uma colaboração com O Ribatejo. Chego aqui pela mão do Daniel Abrunheiro, cronista deste jornal, meu amigo e, na minha opinião, o mais importante poeta do século XXI. Agradeço ao senhor Director de O Ribatejo a confiança em mim depositada e faço questão de saudar os (desprevenidos) leitores, apresentando-me de modo sucinto: nasci em Coimbra há 52 anos, sou professor, vivo em Ribeira de Pena (Trás-os-Montes). Ando desde menino à porrada com o Tempo. Sofro exageradamente de saudades: do mar, do 25 de Abril, da minha rua coimbrinha com árvores, do futuro, da gente que traiçoeiramente me tem falecido. Hei-de, aliás, falar-vos disto neste espaço, em escritos – se os houver – a haver. Já agora: descobri a expressão “Zona de Perecíveis” numa placa de certo hipermercado em Vila Real, no meio de legumes e frutos muito fresco-coloridos. Cheirava intensamente a morangos em promoção. Achei logo que o nome naquela placa seria o indicado para um espaço de crónica jornalística ou para um livro de poemas. Ou seja, digo eu, para falarmos, à sombra da expressão, da nossa mortalidade imortal. Agora já sabem: se passarem por esta zona, encontramo-nos.

Ribeira de Pena, 28 de Julho de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Nota: Esa crónica, a primeira que envio para o semanário O RIBATEJO, parte de uma anterior que publiquei em "Muito Mar" no ano de 2010.]

terça-feira, 7 de julho de 2015

Instantâneo filipino ou Arte Poética (revisões)



Vem no JN. Uma criança aproveita o néon da publicidade para fazer os trabalhos de casa. Talvez não tivesse (como se lê no jornal) electricidade em casa. Talvez não tivesse silêncio ou paz em casa. Talvez não tivesse casa. Queria estudar e aproveitou a involuntária benesse da urbe - um pedacinho de luz, um rudimento de banco, algum tempo livre.
Hei-de falar disto aos meus alunos: para que eles entendam o que se passa com o jovem filipino; para que eles entendam o que se passa consigo mesmos; para que eles entendam o que se passa com o mundo.
A vida ensina-se.
A vida é um constante enunciado de si própria. A vida é um poema - e é uma arte poética consubstancial ao poema.



Vila Real, 04 de Julho de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, no JN (edição de 04-07-2015).]









Praia do Desejo


1
O poeta dá asas aos frutos.

2
Os frutos saem das árvores –
Voam para fora do pomar natal
Voam à roda dos olhos
(Voam por dentro e por cima do poema).

3
Os frutos exibem ou sugerem
A sua forma única, a sua específica
Textura, o seu inconfundível sabor
O seu característico caroço, a sua
Própria cor, a sua original condição
De liberdade.

4
Nenhum fruto volta à árvore original.
Nenhuma prisão o guarda para sempre.

5
O destino dos frutos admiráveis é
Serem admirados.

6
Muitos frutos tornam-se pássaros, outros
(Que pena haver o bruto Tempo!)
Envelhecem
Indistintamente.

Vila Real, 04 de Julho de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.baudeatividades.blogspot.com.]

Sob o Tempo (Sobre o Tempo)


Somos reféns do Tempo
Até ao fim.
Não há resgate que nos salve
Do sequestrador consabido.
Mas basta um pequeno raio de sol
Colhida à janela da prisão
Para nos fingirmos
(Para nos sentirmos)
Livres
Eternos!

Vila Real, 04 de Julho de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.caminhosdamemoria.wordpress.com.]

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Canção de antes do fim


"Tudo o que não tem remédio, depois de dito, remediado está." (JJC)

Tem sempre um outro lado a nossa vida
Porque a cada dia há um verso novo
Que traz consigo já o seu reverso
Isto é, o fim, o adeus, nova partida.

Há mortes que discretamente ocorrem
Sombras leves sobre o sol, sobre um sorriso;
Há outras mais brutais que sem aviso
Matam de outra forma os que não morrem.

E há tanto do passado no presente:
Tempo, sonhos, árvores. pureza...
Há tanto adeus em nós a tanta gente!

Que fazer do fim, desta tristeza
Senão uma canção de estar contente
Por vivo ainda se ver tanta beleza?

Ribeira de Pena, 01 de Julho de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, no maravilhoso filme de animação "The Lighthouse" (2010), de Po Chou Chi.]