Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (1)

O valor da metáfora
A metáfora, como eu a entendo, é a cósmica tentativa de articular a verdade com o verbo humano. Radica numa espécie de consciência do défice da linguagem normal, e na concomitante necessidade (urgência até) de criar modos de dizer o que, existindo, não se explica facilmente, normalmente. Um dia, em viagem de automóvel, à conversa com a minha filha, percebi isto muito bem.
Ela tinha, então, quatro anos. Íamos buscar a minha mulher, que trabalhava a quarenta quilómetros da nossa residência. Para entreter a monotonia das rectas, eu ia falando, contando histórias, questionando-a. A miúda respondia com a simplicidade (de modos e de vocabulário) que a sua pouca idade explica. A certa altura, perguntei-lhe se gostava de mim.
Ela respondeu: «Gosto.»
Perguntei-lhe se também gostava da mãe. Ela disse: «Também.»
Levantei a fasquia da dificuldade e perguntei-lhe se gostava mais da mãe ou do pai. A miúda levou mais tempo a responder, mas desenrascou-se bem: «Gosto dos dois.»
Prossegui a entrevista, complexificando a conversa, já talvez adivinhando a sua desistência iminente: «Quanto é que gostas de mim?»
Ela, cada vez mais embaraçada, foi ainda capaz de se exprimir: «Muito.»
Temi pela minha filha, tão à beira de um esgotamento lexical, mas arrisquei ainda: «Muito, quanto?»
Caiu então um mui espaçado silêncio sobre a noite. A menina decerto sentia a resposta, mas não havia (em seu pobre vocabulário de infante) palavras para dizer o que inteiramente sentia. 
E nós passávamos enfim por Cantanhede, a caminho da vila de Febres, quando ela, interrompendo silêncio e breu, apontou para o maior edifício à vista e exclamou: «Gosto de ti aquela casa toda!»
Entendeis? A minha filha tinha descoberto a metáfora e oferecera-ma.

ADENDA
Inicio, com honra e gosto, uma colaboração com O Ribatejo. Chego aqui pela mão do Daniel Abrunheiro, cronista deste jornal, meu amigo e, na minha opinião, o mais importante poeta do século XXI. Agradeço ao senhor Director de O Ribatejo a confiança em mim depositada e faço questão de saudar os (desprevenidos) leitores, apresentando-me de modo sucinto: nasci em Coimbra há 52 anos, sou professor, vivo em Ribeira de Pena (Trás-os-Montes). Ando desde menino à porrada com o Tempo. Sofro exageradamente de saudades: do mar, do 25 de Abril, da minha rua coimbrinha com árvores, do futuro, da gente que traiçoeiramente me tem falecido. Hei-de, aliás, falar-vos disto neste espaço, em escritos – se os houver – a haver. Já agora: descobri a expressão “Zona de Perecíveis” numa placa de certo hipermercado em Vila Real, no meio de legumes e frutos muito fresco-coloridos. Cheirava intensamente a morangos em promoção. Achei logo que o nome naquela placa seria o indicado para um espaço de crónica jornalística ou para um livro de poemas. Ou seja, digo eu, para falarmos, à sombra da expressão, da nossa mortalidade imortal. Agora já sabem: se passarem por esta zona, encontramo-nos.

Ribeira de Pena, 28 de Julho de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Nota: Esa crónica, a primeira que envio para o semanário O RIBATEJO, parte de uma anterior que publiquei em "Muito Mar" no ano de 2010.]

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