Parábola da urgência
Há
aquele tempo em que nos sentimos imortais, não é? Acordamos, todos os dias,
para um novo dia, e nenhum dia é o último. Outorgamo-nos secretamente o direito
à permanência ilimitada. Habitamos nada menos que a plenitude. Acreditamos que nenhum
dia é repetido, embora – se o quisermos – tudo seja repetível. E, não obstante
o vago susto de algumas mortes (ou migrações semelhantes), nem sequer
desconfiamos da cínica verdade que nos governa – a de o tempo ser emprestado,
de vivermos a prazo.
Cruzei-me
há dias com um amigo antigo. Daqueles dois ou três que, com sorte, nos é dado descobrir
em cinquenta anos. Há uns seis meses que não o via. Cumprimentei-o de fugida,
porque tinha pressa (questões de mercearia ligadas a carro e casa). Mas
prometi-lhe um telefonema “em breve”. À noite, recordando aquele encontro
desperdiçado, uma vaga neura de remorso ensombrou-me o jantar.
Num
dominó de lembranças, viajei até àquele dia em que não telefonei ao meu Pai, incumprindo
a promessa feita, e depois até àquele domingo em que ele não atendeu a minha
chamada, e depois até àquela manhã de sábado em que o Emanuel (meu irmão) me
telefonou e disse, “O Pai morreu”, chorando como um menino.
Viajei
também até àquele mês de Maio de 2010, quando telefonei para o meu sogro, o
Mestre João (dito “Mestre” em atenção, antes de mais, à sua carreira na
construção civil, depois em reconhecimento da sua faiscante sabedoria) e o
informei do nosso encontro a haver, muito em breve, na Madeira. Sabendo-o doente,
eu vencera o medo de andar de avião e decidira, nesse ano, acompanhar a minha
mulher na viagem à sua ilha natal. O Mestre João gargalhou, feliz com a
notícia, mas quis logo saber a data exacta da nossa chegada. Disse-lha: 29 de
Julho. Após uns segundos, ouvi-o murmurar em tom preocupado: “Não sei se lá
chego…” Ralhei com ele: que diabo de pessimismo, logo ele que era um homem
forte, ainda haveríamos de nos encontrar muitas vezes, etc.
A
meio de Junho, o meu sogro foi internado. A sua saúde esvaziava-se como um
balão cansado. Temendo o pior, a minha mulher foi para a Madeira mais cedo.
Dela fui sabendo que o Mestre João piorara, melhorara, piorara de novo, e que
deixara de comunicar com o mundo, e que respirava por uma máscara, e que,
enfim, por ali jazia sem esperança. Cheguei à ilha, como previsto, a 29 de
Julho. Só no dia seguinte o vi, finalmente, num pequeno quarto do Hospital
Nélio Mendonça onde havia três camas (uma delas ainda – ou já - vazia). A minha
mulher acariciou-lhe as mãos e o rosto, passou-lhe um pano húmido pelos lábios
muito secos, falou com ele (como se ele a pudesse ouvir), disse-lhe que eu já
chegara. Mantive sempre um cobarde silêncio, não conseguindo senão olhar
fixamente para aquele apagamento do Mestre amigo. Ele resfolegava, como um
atleta correndo para a meta (ou então como alguém fugindo de um perigo próximo
e mortal). À saída, garanti à família toda, sem convicção: “Ele ainda acorda,
vão ver!”
Nessa
mesma tarde, enquanto dolentemente caminhávamos por Machico, rente ao mar, o
telefone tocou e a minha cunhada disse: “Morreu.” Com a idade (aí vai um
clichê), aprendemos a distinguir o essencial do acessório. A perceber o que
Eugénio de Andrade quis dizer com isso de ser “urgente o amor”. Ou por que
razão Alexandre O’Neill queria abraçar-se à sua (pontual) amada “contra a
morte”.
O final desta crónica sou eu a conversar, ainda ontem, num Café
familiar em Coimbra, com o meu amigo Rui Candeias, à vista de cerveja e de
tremoços sobre a mesa, reflectindo-resmungando-rindo. Sem pressas, notai, porque
era urgente estarmos ali.
Coimbra, 04 de Agosto de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Crónica publicada no semanário O RIBATEJO, edição de 06 de Agosto de 2015.]
Sem comentários:
Enviar um comentário