Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (2)

Parábola da urgência

Há aquele tempo em que nos sentimos imortais, não é? Acordamos, todos os dias, para um novo dia, e nenhum dia é o último. Outorgamo-nos secretamente o direito à permanência ilimitada. Habitamos nada menos que a plenitude. Acreditamos que nenhum dia é repetido, embora – se o quisermos – tudo seja repetível. E, não obstante o vago susto de algumas mortes (ou migrações semelhantes), nem sequer desconfiamos da cínica verdade que nos governa – a de o tempo ser emprestado, de vivermos a prazo.
Cruzei-me há dias com um amigo antigo. Daqueles dois ou três que, com sorte, nos é dado descobrir em cinquenta anos. Há uns seis meses que não o via. Cumprimentei-o de fugida, porque tinha pressa (questões de mercearia ligadas a carro e casa). Mas prometi-lhe um telefonema “em breve”. À noite, recordando aquele encontro desperdiçado, uma vaga neura de remorso ensombrou-me o jantar.
Num dominó de lembranças, viajei até àquele dia em que não telefonei ao meu Pai, incumprindo a promessa feita, e depois até àquele domingo em que ele não atendeu a minha chamada, e depois até àquela manhã de sábado em que o Emanuel (meu irmão) me telefonou e disse, “O Pai morreu”, chorando como um menino.
Viajei também até àquele mês de Maio de 2010, quando telefonei para o meu sogro, o Mestre João (dito “Mestre” em atenção, antes de mais, à sua carreira na construção civil, depois em reconhecimento da sua faiscante sabedoria) e o informei do nosso encontro a haver, muito em breve, na Madeira. Sabendo-o doente, eu vencera o medo de andar de avião e decidira, nesse ano, acompanhar a minha mulher na viagem à sua ilha natal. O Mestre João gargalhou, feliz com a notícia, mas quis logo saber a data exacta da nossa chegada. Disse-lha: 29 de Julho. Após uns segundos, ouvi-o murmurar em tom preocupado: “Não sei se lá chego…” Ralhei com ele: que diabo de pessimismo, logo ele que era um homem forte, ainda haveríamos de nos encontrar muitas vezes, etc.
A meio de Junho, o meu sogro foi internado. A sua saúde esvaziava-se como um balão cansado. Temendo o pior, a minha mulher foi para a Madeira mais cedo. Dela fui sabendo que o Mestre João piorara, melhorara, piorara de novo, e que deixara de comunicar com o mundo, e que respirava por uma máscara, e que, enfim, por ali jazia sem esperança. Cheguei à ilha, como previsto, a 29 de Julho. Só no dia seguinte o vi, finalmente, num pequeno quarto do Hospital Nélio Mendonça onde havia três camas (uma delas ainda – ou já - vazia). A minha mulher acariciou-lhe as mãos e o rosto, passou-lhe um pano húmido pelos lábios muito secos, falou com ele (como se ele a pudesse ouvir), disse-lhe que eu já chegara. Mantive sempre um cobarde silêncio, não conseguindo senão olhar fixamente para aquele apagamento do Mestre amigo. Ele resfolegava, como um atleta correndo para a meta (ou então como alguém fugindo de um perigo próximo e mortal). À saída, garanti à família toda, sem convicção: “Ele ainda acorda, vão ver!”
Nessa mesma tarde, enquanto dolentemente caminhávamos por Machico, rente ao mar, o telefone tocou e a minha cunhada disse: “Morreu.” Com a idade (aí vai um clichê), aprendemos a distinguir o essencial do acessório. A perceber o que Eugénio de Andrade quis dizer com isso de ser “urgente o amor”. Ou por que razão Alexandre O’Neill queria abraçar-se à sua (pontual) amada “contra a morte”. 
O final desta crónica sou eu a conversar, ainda ontem, num Café familiar em Coimbra, com o meu amigo Rui Candeias, à vista de cerveja e de tremoços sobre a mesa, reflectindo-resmungando-rindo. Sem pressas, notai, porque era urgente estarmos ali.

Coimbra, 04 de Agosto de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Crónica publicada no semanário O RIBATEJO, edição de 06 de Agosto de 2015.]



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