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segunda-feira, 25 de março de 2013

O romancista, segundo Kundera


 Numa dissertação de mestrado que redigi há mais de dez anos (sintomaticamente intitulada “Álvaro Guerra, Ruy Belo e José Saramago – a importância da literatura na emancipação ética do real”), explorei com algum pormenor a distinção entre o historiador e o escritor face ao real. Pareceu-me – então como hoje – um exercício produtivo.
Relativamente ao conto, à novela e ao romance, essa distinção entre o ofício do historiador e o dos contadores literários pressupunha a comum intenção da narrativa, mas iluminava (modéstia à parte, com rigor) algumas essenciais diferenças.
Num brutal resumo, direi agora que a narrativa literária, ao contrário do que se passa com a investigação histórica, não se sente obrigada a uma obediência estrita à factualidade tout court. A literatura, enquanto arte, acrescenta subjectividade aos eventos, aos calendários, às personalidades. A reinvenção do real está, digamos assim, na sua natureza genológico-modal. E não se trata, sublinho, de mentir, mas de transcender (esteticamente) a realidade, acrescentando-lhe sentido (ou sentidos).
À época, confesso, eu não lera ainda A Arte do Romance, de Kundera. Mas experimentei - já em 2009 e agora - na leitura e releitura desta obra uma sensação de grata cumplicidade com tão brilhante escritor. Respigo, entre outros trechos luminosos, dois exemplos da lucidez kunderiana:

«Um historiador conta os acontecimentos que se passaram. […]O romance não examina  realidade, mas sim a existência. E a existência não é o que se passou, a existência é o campo das possibilidades humanas, tudo o que o homem pode vir a ser, tudo aquilo de que ele é capaz. Os romancistas elaboram o mapa da existência ao descobrirem esta ou aquela possibilidade humana. Mas, mais uma vez, existir significa “estar-no-mundo”. É preciso, portanto, compreender quer a personagem quer o seu mundo como possibilidades.» (Milan Kundera, A Arte do Romance, Lisboa, Ed. Dom Quixote, página 58.)

«O romancista […] é um explorador da existência.» (Milan Kundera, ob.cit., página 60.)
 
Sobre esta última asserção, faltará acrescentar que o leitor de romances, enquanto testemunha ocular, anda mais ou menos a par do romancista. Isto é, esta exploração não é exclusiva da escrita; também comete a leitura.


Coimbra, 25 de Março de 2013.

Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.leyaonline.com.]

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