Relativamente ao conto, à novela e ao romance, essa distinção entre o ofício do historiador e o dos contadores literários pressupunha a comum intenção da narrativa, mas iluminava (modéstia à parte, com rigor) algumas essenciais diferenças.
Num brutal resumo, direi agora que a narrativa literária, ao contrário do que se passa com a investigação histórica, não se sente obrigada a uma obediência estrita à factualidade tout court. A literatura, enquanto arte, acrescenta subjectividade aos eventos, aos calendários, às personalidades. A reinvenção do real está, digamos assim, na sua natureza genológico-modal. E não se trata, sublinho, de mentir, mas de transcender (esteticamente) a realidade, acrescentando-lhe sentido (ou sentidos).
À época, confesso, eu não lera ainda A Arte do Romance, de Kundera. Mas experimentei - já em 2009 e agora - na leitura e releitura desta obra uma sensação de grata cumplicidade com tão brilhante escritor. Respigo, entre outros trechos luminosos, dois exemplos da lucidez kunderiana:
«Um historiador conta os acontecimentos que se passaram. […]O romance não examina realidade, mas sim a existência. E a existência não é o que se passou, a existência é o campo das possibilidades humanas, tudo o que o homem pode vir a ser, tudo aquilo de que ele é capaz. Os romancistas elaboram o mapa da existência ao descobrirem esta ou aquela possibilidade humana. Mas, mais uma vez, existir significa “estar-no-mundo”. É preciso, portanto, compreender quer a personagem quer o seu mundo como possibilidades.» (Milan Kundera, A Arte do Romance, Lisboa, Ed. Dom Quixote, página 58.)
«O romancista […] é um explorador da existência.» (Milan Kundera, ob.cit., página 60.)
Sobre esta última asserção, faltará acrescentar que o leitor de romances, enquanto testemunha ocular, anda mais ou menos a par do romancista. Isto é, esta exploração não é exclusiva da escrita; também comete a leitura.
Coimbra, 25 de Março de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.leyaonline.com.]
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