Por acidente doméstico, voltei a ler um notável livrinho que, durante a escrita da minha disseração de doutoramento, escalpelizei vorazmente: A Arte do Romance, de Milan Kundera. Tropecei no livro, durante as arrumações que sempre antecipam as surtidas à Coimbra natal. Como hei-de explicar-vos a alegria deste reencontro? Percebeis decerto o deslumbramento que é "ouvir" alguém falar desse milagre precioso e eterno que é a literatura, sobretudo quando se trata de uma voz autorizada, lúcida, brilhante.
[Aviso: suspeito que trarei ao Muito Mar muitas destas pérolas que, página a página, voltei agora a descobrir (o eu-que-agora-sou confirmando a importância dos trechos sublinhados pelo eu-que-antes-era, usando riscos vermelhos ou azuis, páginas dobradas, marcos geodésicos de papel).]
Encostado a Husserl, aí pela páginas 30 e seguintes, Kundera explica que sendo a razão de ser do romance «manter "o mundo da vida" sob uma iluminação perpétua e proteger-nos contra o "esquecimento do ser", a sua existência será hoje mais necessária que nunca».
E acrescenta:
«O espírito do romance é o espírito da complexidade. Cada romance diz ao leitor: "As coisas são mais complicadas do que tu pensas." [...]»
A visão do autor de A Insustentável Leveza do Ser não é, contudo, optimista:
«É a verdade eterna do romance mas que cada vez se faz menos ouvir na algazarra das respostas simples e rápidas que precedem a pergunta e a excluem.»
Amen, digo eu, suspirando.
Escrever romances é uma arte. Escrever sobre escrever romances é outra arte. Ler o que dizem os bons artistas é um prazer.
Coimbra, 21 de Março de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[a foto de Kundera foi colhida, com a devida vénia, em http://www.armonte.wordpress.com.]
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