Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

domingo, 15 de julho de 2012

História de amor


A prima Marília veio a Portugal vender uma casa e um terreno que o avô Fernandes lhe deixara há vinte anos, nas imediações da Figueira da Foz. Era uma senhora divertida, já idosa, emigrada no Brasil desde muito pequena. O senhor Valter dos correios insistiu muito com a familiar: que viesse a Coimbra para falarem, para elaver a Gracinda, para irem às queijadas de Tentúgal. A resposta foi que talvez, mas puxa, cê sabe, as viagens nessa idade custam p’ra caramba – e depois lá veio mesmo, saindo do comboio à Estação Velha.
Ficou um dia apenas com a família conimbricense. Antes de embarcar no alfa para Lisboa, quis ainda tomar um suminho num Café próximo da residência do primo.
A dona do estabelecimento tinha a bonomia de um inspector da Gestapo. Gritava com a empregada, discutia ao telefone com um fornecedor de cerveja, impacientava-se perante hesitações dos clientes juvenis na hora de escolher a marca de um gelado.
A emigrante no Brasil escandalizou-se com o berro que a matrona ao balcão dedicou à empregada e falou:
- Minha quirida, cê tem dji tê calma, meu bem. Todo o mundo precisa dji amor.
Respondeu-lhe a proprietária, tonitruante como um furacão bíblico:
- Ó minha senhora, temos aqui café, chá, sumos, bolos, sandes, tostas, sopas e salgados. Amor não temos!

Coimbra, 14 de Julho de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.idetoni.blogspot.pt.]

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Sextilha para Soares de Passos


Era de pedra vera
A estrada
Por onde o poeta ia -
E de pedra também era
O coração da amada
Que o não queria.

Arco de Baúlhe-Ribeira de Pena (em viagem), 13 de Julho de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.infopedia.pt.]

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Parábola das equivalências


Quando disseram ao cábula que o curso era de três anos, ele exclamou:

- Equivalha-me Deus!”

Arco de Baúlhe, 12 de Julho de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.umsonhochamado matilde.blogspot.pt. Escrevi o  texto a 10-07-2012 e publiquei-o nesse dia em primeira instância, no Facebook.]

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Diabo de greve

- Já viste, pá?
- Hã?
- A greve dos médicos…
- Que é que tem?
- É chato, pá. Prejudica as pessoas. Que culpa têm as pessoas, pá, dos problemas dos médicos, hã?
- Os problemas dos médicos também são problemas das pessoas. A começar pela circunstância de os médicos também serem pessoas…
- Pois sim. Não digo que não, mas…
- Mas o quê?
- Deviam fazer greve sem prejudicar os utentes, pá… Não achas?
- A greve é uma forma de luta. E só resulta se se notar. Isso de greves que não prejudiquem ninguém é uma imbecilidade, desculpa lá…
- Olha, pá, o Diabo é que nunca faz greve…
- Não? Achas?
- Pois, pá. Se o Diabo fizesse greve, como é que nós notávamos?
- Sei lá. Talvez estranhássemos estar o mundo sem problemas…
- Exacto. Corria tudo bem. Diríamos: Ó Diabo!  Algo de estranho se passa…
- Tens razão. Mas o cabrão do Diabo deve ter excelentes condições de vida…Não precisa de fazer greve!
- Hã?
- Pois, pá. Não tem problemas com a saúde, a educação, a habitação, o comer, a justiça…
- Pois sim. Mas da maneira que isto anda, haverá um dia em que o próprio Diabo fará greve…
- Deus queira, pá. Deus queira!

[A imagem (aspecto de Penedono, local onde este textinho nasceu) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.heritage2008.greenlines-institute.org.]

O tio do senhor Valter


O senhor Valter, no regresso ao trabalho, depois do almoço, encontrou aquele homem às portas da estação dos correios. A princípio, nem o reconheceu, mas depois atentou melhor no nariz espalmado e largo do sessentão, no sorriso triste de menino grande, no delta prognato a sul do rosto.
- Tio Joaquim?
Um abraço, uma gargalhada, certos segundos remirando-se. Enfim, o motivo da visita (rara, rara) deste irmão mais novo do pai.
- Precisava que me ajudasses a escrever um requerimento, menino.
Explicou-se melhor. Tinha comprado um carro há dois anos em “leasing” (o senhor Joaquim dizia “lisse”) para ir com a esposa, a ti’Ana, vender hortaliça a Coimbra – ao Bairro Norton de Matos, ao Monte Formoso, ao Casal Ferrão, ao Barrro do Brinca, a Santa Apolónia, à Adémia, aos Fornos. Quando a mulher adoecera, coisa ruim dos ossos, lá diminuira a dedicação aos negócios e, claro, as contas haviam descambado.
- O problema é que, sem carro, não ganho dinheiro que se veja e a minha reforma nem para metade da prestação dá. Se os gajos da Martinloc me reduzissem o valor da mensalidade e me devolvessem a carrinha, eu podia pagar-lhes. Precisava de tempo e de compreensão, né?
O senhor Valter levou o tio ao chefe dos correios, pessoa habituada a reclamações e requerimentos, e transmitiu-lhe, em breves palavras, a angústia do familiar.
- Muito bem – disse o chefe, que estava contente porque a filha conseguira entrar na universidade e a mulher cozinhara, para o almoço, uma massinha guisada que era de a gente comer e ajoelhar-se perante Deus.
Mas fez questão de moderar as expectativas do senhor Valter e do senhor seu tio.
- Não vai ser fácil, senhor Joaquim, embora seja evidente que tem razão. A sua situação é até um exemplo claro do que se passa hoje em Portugal.
- Como? – perguntou o vendedor de hortaliça.
- As finanças estão a matar a economia.
O velho figueirense encolheu os ombros e o senhor Valter desconfiou de que o chefe estava a reproduzir, ali, um artigo qualquer que decerto lera na última página do JN.

Arco de Baúlhe, hora d’almoço, 10de Julho de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.devaneiosedesabagos.blogspot.pt/.]

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Arrumações


Domingo, tarde, depois noite.
À pressa, descuidadamente, sem bem olhar para a gaveta, recolho uma camisola e visto-a. É uma camisola muito antiga, como depois percebo, adequada afinal à empresa a que ali me dedico – encaixotar livros, seleccionar papéis para conservar ou deitar fora, ordenar dossiês, proto-preparar as malas de regresso a Coimbra.
A camisola é azul e tem, no canto superior esquerdo, o nobre emblema do Clube de Futebol União de Coimbra (com a cruz de Cristo). Já joguei com um uniforme assim, em manhãs e tardes e noites maravilhosas que, como a mocidade, não voltam mais.
Atravessando o corredor, não resisto e consulto a minha imagem no espelho: barba de dois dias, nuvens brancas disseminadas pelo penteado, olheiras, aquele ricto triste consubstancial à ironia do sorriso. E a camisola: azul coçado, azul velho, um ou outro buraco no lado do emblema (e do coração).
Já tivemos, eu e a roupa, melhores dias. Mas cá estamos, ainda, pele com pele, pregados à mesma cruz de Cristo.


Arco de Baúlhe, hora d’almoço, 09 de Julho de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (com azuis ídolos de infância) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.retrofoot2.pt.]

domingo, 8 de julho de 2012

Ensaio da inquietação


“Cantanhede, Cantanhede
Tenho sede de aprender
A lição da Novidade
(A lição da Novidade).
Dá-me sede, Cantanhede,
De aprender e de ser
Cidadão da Liberdade
(Cidadão da Liberdade,
Cidadãos da Liberdade)!”

1. Este texto abre com uma epígrafe, como repararam: trata-se do refrão do hino da Escola Secundária de Cantanhede (letra minha, música do colega Aurélio Malva). Segue-se, com vossa licença, uma historieta, que não é minha e – pior – de que nem sei a exacta fonte. Ouvi-a há muito tempo, talvez nos tempos de liceu ou faculdade; reouvi-a há umas duas semanas na rádio, em viagem de automóvel entre Arco de Baúlhe e Ribeira de Pena, glosada por um romancista português pouco conhecido (Afonso Cruz) à conversa com Carlos Vaz Marques, da TSF. Historieta boa, atentai.
2. Uma criança vê, por longos minutos, um escultor a trabalhar, percebendo que do labor esculpido na pedra vai resultando uma forma reconhecível, viva, amável. Volta-se para o seu pai e pergunta-lhe: “Papá, como sabia o senhor artista que, debaixo da pedra, estava um cavalo?
3. A parábola serve para uma inteira biblioteca de interpretações, mas fico-me por esta: o artista busca no todo a parte que interessa, isto é, resgata do caos um pedaço essencial, valioso, significativo de cosmos. Acrescento: a arte é o fruto do trabalho sobre o real, ofício levado a cabo com a imaginação adequada e com aquela pulsão do belo que preside a todo o acto criador.
4. Quero que isto tenha algo a ver com a Escola. Com a nossa Escola. Com Cantanhede, bem entendido, que é a pátria deste formoso boletim. Mas também com a Escola Pública em geral, esse território em que, avulsos e díspares, nos reunimos em busca de um objectivo comum e consensual: a educação dos nossos alunos, a partilha de conhecimentos, a descoberta de competências, a preparação (tanto quanto possível, justa e virtuosa) do futuro.
5. Vivem-se tempos difíceis. Temo, com muitas razões para esta amargura, que a Escola esteja em vias de extinção. Escola, percebei, como nós (românticos até à medula) a entendemos, a entendíamos. A fúria da poupança orçamental comporta o perigo de confundirmos ideais por que pugnámos nas últimas décadas com alguma substância acessória e descartável. Estou a falar, sobretudo, de cultura. Estou a reagir, por instantes, à nova estrutura curricular prevista para o ensino básico e secundário que deixa ao livre arbítrio dos estabelecimentos de ensino a existência de Educação Artística. E estou a falar também do insuportável aumento do número máximo de alunos por turma (até 30!) que tornará impossível, por exemplo, a aprendizagem séria de uma língua estrangeira.
6. Creio que uma Escola Pública de qualidade, a única que justifica o investimento sério do Estado, precisa de não ter medo nem vergonha de gastar – i.e., de investir - muito dinheiro nos recursos humanos e materiais que a tornam possível e digna. E defendo que a organização da Escola nada ganhará com uma reforma que, para cortar alguma despesa, extinga experiências educativas de sucesso, fundindo/confundindo arbitrariamente escolas (e assim ferindo de morte a identidade de lugares, pessoas, projectos), reduzindo a grandeza da aposta nas bibliotecas, tornando as reuniões de qualquer médio departamento num concílio cheio de magno e semiótico ruído, etc.
7. Os mega-agrupamentos são, em meu entender, a face visível de alguma ferocidade tecnocrática do presente, que lê o mundo pelos óculos merceeiros do deve e haver, com inevitável défice de sensibilidade e bom senso. Não se trata sequer de um problema deste governo; é outrossim de vários governos ao longo da história, semelhantes na arte de ignorar opiniões, estudos e conselhos de quem sabe alguma coisa de educação (professores, por exemplo).
8. Um dia destes completarei trinta anos de profissão. O que mantenho de romântico é a fé no futuro e a convicção – inamovível – com que, aula após aula, projecto após projecto, actividade após actividade, trato bem (d)os meus alunos. No pequeno universo de que ainda disponho para ser professor, vou procurando contagiá-los com a minha paixão pelo Conhecimento, pela Língua, pela Cultura, pela Vida.
9. A muitos dos que nos tutelam não faria mal a leitura de alguns autores. Lembro-me, assim de repente, de Steiner para aprenderem um bocadinho sobre a importância da cultura e sobre o significado de “gramática da esperança”. Ou de Sartre, pra recordarem a indispensável condição do conhecimento para se ser livre, e da liberdade para um homem ser verdadeiramente digno da sua condição (quiçá feliz).
10. De modo que o meu texto (talvez o último que tenho a honra de escrever neste boletim) regressa, desaguando, à epígrafe e à historieta com que se fez retoricamente ao mar: é preciso garantir, na Escola, o acesso às artes e à cultura em geral, para que a Escola seja realmente um alfobre de cidadãos da liberdade; é preciso salvar o essencial – fazer emergir um cavalo (ou uma flor) da caótica, bruta, estúpida pedra do mundo.

Arco de Baúlhe, 27 de Junho de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este texto foi escrito para o Boletim da Biblioteca da (muito querida) Escola Secundária de Cantanhede que, de acordo com notícias recentes - e, em minha opinião, infelizes - se irá agrupar com Febres. A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.escantanhede.pt.]

sábado, 7 de julho de 2012

Concha


Sábado invisível. Um dia inteiro de alienação voluntária, consciente, grata. Nem por um instante saí de casa, nem por um minuto pus os pés na varanda, nem por sombras me apeteceu trocar os calções e a t-shirt por roupa de ir à rua. Sábado, digamos, só de livros, de televisão e de uns seis episódios de "Will & Grace". (Intervalos para conversar com a MP, para dormitar, para dez minutos de computador.)
Desde pequeno que preciso, de vez em quando, de uma concha mínima, um refúgio invisível que me livre do mundo - e dispense o mundo de me aturar. Já fui este Robinson Crusoë, ao longo das décadas que sou, na despensa da casa materna, numa arrecadação exterior contígua a uma capoeira, num canto esconso do meu quarto, numa casa de praia em Mira, na casa da família madeirense, num quarto de estudante em Edimburgo, em pensões ou hotéis lisboetas (sem estrelas), em bibliotecas municipais, numa pastelaria pacata ou no meu carro (entre aulas ou reuniões).
Morre-se por um bocadinho para recarregar a alma de paciência e de ilusão. Morre-se para voltar.
Isto escrito, vou agora acabar de morrer por mais umas horas.
E devo voltar.

Ribeira de Pena, 07 de Julho de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.culturamix.com/.]

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Trás-os-Montes


Naquela terra, era normal os poetas subirem a um monte cheio de árvores e flores para, em silêncio, ficarem horas inteiras a observar a longínqua praia. Era também comum ver sair dos olhos dos poetas (de cada poeta) uma gaivota que, como se de versos voadores se tratasse, batia asas rumo ao mar distante.
Quando um forasteiro passeando pelo areal se dava subitamente conta de certo bando de gaivotas mergulhando nas ondas, vindas todas de uma montanha a vários quilómetros dali, perguntava sempre:
- O que é isto?
E os locais respondiam-lhe invariavelmente o mesmo:
- São poetas com saudades do mar.
[…]
Mais à noite, os meus olham fecham-se, reabrindo-se de manhã com olheiras à volta. As olheiras são o reflexo da gaivota dentro da minha cabeça, antes do voo.

Vila Real, 06 de Julho de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.geografia-psol.blogspot.pt.]

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Revisões da matéria dada


Fica quanto do que dei?
Fica o quê de vosso e meu?
Fica como o que deixei?
Fica onde o que nasceu?

Cabeceiras de Basto, 05 de Julho de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Sai (mais) uma licenciatura para a mesa do canto!

1.                      Sabe-se que o ministro Miguel Relvas tem uma licenciatura obtida num ano. O escândalo não diminui com a explicação oficial: coisas de Bolonha, da apreciação do currículo profissional do “estudante”, de bondosas equivalências…
1.1.                Relvas, perante o bruá nacional, assustou-se e já diz que não tem culpa, apenas fez o que lhe permitiram, nos termos em que – garante – a lei e a Universidade Lusófona autorizaram.
1.2.                 O primeiro-ministro desvalorizou publicamente esta questão: chamou-lhe “não caso” (sic) e manifestou até regozijo por não haver qualquer ilicitude envolvida. Infelizmente para Passos Coelho, há gravações suas verberando o projecto das Novas Oportunidades que - defendia há meses - apenas certificavam ignorâncias…
1.3.                Falta-nos saber o que pensa deste fenómeno o ministro Nuno Crato, tão tonitruante se revela o matemático, tantas vezes, contra o “facilitismo” e a incompetência reinantes no sistema educativo português.
2.                      Ultimamente, toda a gente se tem lembrado do caso da licenciatura de Sócrates, como uma outra versão desta mesma (triste) história. E têm razão! Porque esta gente parece constituir-se de fura-vidas que são, afinal, clones uns dos outros. E depois chegam a ministros, secretários de estado, administradores da coisa pública ou privada.
2.1.                No caso de Sócrates, o que me chocou mais, na altura, não foi – confesso – a venalidade da Universidade Independente ou a ausência de escrúpulos do ex-governante. Foi sim Mariano Gago, ministro, à época, da Ciência e do Ensino Superior, ter chamado “exemplar” ao percurso académico do ex-chefe de governo.
3.                      Há uns anos, em entrevista, Pina Moura (ex-comunista, depois socialista, depois administrador de grandes empresas) garantia não ter remorsos nem problemas de consciência por, no parlamento, defender mudanças no preço da energia que, quando concretizadas, beneficiariam a Iberdrola (uma firma espanhola em que já trabalhava enquanto ainda deputava). Falta de ética? Talvez não: a criatura explicou que a sua ética era a “ética republicana” – e que tal significava a possibilidade de tudo se fazer desde que fosse legal.
3.1.                E assim se confirmava ali uma célebre ideia de Eça de Queirós que, no século XIX, referindo-se causticamente a alguns portugueses da Regeneração, identificava “respeito” com “medo da polícia”.
4.                      Eu sei que é preciso cuidado quando nos atrevemos a opinar publicamente sobre o carácter das pessoas. Mas Relvas, segundo parece, declarou na Assembleia da República, no espaço relativo ao currículo académico dos deputados, que frequentara o 2.º ano de Direito. Era mentira; ele apenas fizera uma cadeira nesse curso, obtendo a interessante classificação de dez valores. Tendo a considerar que se tratou de um lapso.
4.1.                A explicação de Relvas para o seu miserável currículo académico é a de que, nos anos 80 do século passado, estaria muito empenhado na actividade política. (Esta circunstância, supostamente, deveria merecer do povo português compreensão e gratidão.)
4.2.                Ao invés desta retórica de Relvas, Cavaco Silva, há alguns anos, querendo explicar a sua falta de militância pela liberdade nos tempos do fascismo, explicara que, por estar muito ocupado a estudar, não tivera tempo para actividades políticas.
4.3.                 Para mim, a explicação de Cavaco é pobrezinha, mas honesta. Já a explicação de Relvas parece a desculpa de um cábula que encontra as mais mirabolantes justificações para a sua incapacidade e o seu insucesso escolares.
5.                       Subsiste esta noção de que, hoje como no tempo de José Sócrates, se confunde estudo com obtenção de diplomas. O processo (real aquisição de conhecimentos e competências) é olhado com desprezo por estes novíssimos self-made men, como se se tratasse de pormenores, de superficialidades, de inutilidades, de perdas de tempo!
6.                       Como a contemporaneidade vai cínica, fico à espera de ainda ouvir gente como Miguel Relvas perorar, um dia destes, sobre exigência e rigor na sociedade, em particular na educação. Tudo é possível, senhores. O homem é ministro por enquanto. E é, Deus seja louvado, licenciado para sempre!

Arco de Baúlhe, 04 de Julho de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.sicnoticias.sapo.pt.]

terça-feira, 3 de julho de 2012

Praia mãe


Vi sempre nas ondas uma promessa
De outra vida
De sair da insignificância do meu corpo
E conhecer um pouco de céu.


Vou a mar como quem vai à igreja
E gosto desta forma de Deus marulhando
Deus marulhando indo-vindo
Deus com sal e algas e peixes
Deus conversando comigo até ao horizonte.


Todos os dias sem mar são intervalos
Entre mim e a vida verdadeira.
O sol quando vem é só uma carícia mais
(Apetece-me sempre o mar mesmo sem sol).


Quando a minha mãe me embalava à tardinha
Era já a amada canção do mar ali -
E eu antes de adormecer brincava com Deus
Entrando as ondas lindas que sonhava.

Ribeira de Pena, 03 de Julho de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[Praia da Tocha (foto JJC).]

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Escrita frágil

Existir é bem frágil condição
Na breve poesia dos desejos:
Morremos ao morrer a ilusão
E em verso renascemos como beijos.

Ribeira de Pena, 02 de Julho de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (do filme Casablanca) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.assimerahollywood.wordpress.com/.]

domingo, 1 de julho de 2012

Um segundo mais


Li no “JN” que o dia de hoje tem mais um segundo. Poupo-me a detalhes técnico-científicos (minúcias relativas à translação e à rotação, e assim-assado). Fico-me pela noção de que, em bom rigor, termos hoje um inteiro segundinho mais de vida.
Pergunta: que farei-faço-fiz com um segundo mais?
Sei que esse segundo não tem um lugar exacto e pré-ordenado no conjunto dos (calculo) vinte e um mil seiscentos e um segundos de hoje. Ganhá-lo-emos (ou perdê-lo-emos) no princípio, algures a meio, ou no fim deste dia único?
Para quem faz do dia uma inevitabilidade pesada e pesarosa, um segundo a mais ou a menos não faz diferença. Mas para os outros (aqui em segredo: para nós) é uma pepita de ouro irrepetível que nos acrescentará de um bocadinho de sol, de música, de poesia, de amor.
Talvez o segundo extra seja o que faltou a Mário de Sá Carneiro para chegar um pouco mais além. E talvez este segundo a menos tenha estado na base do que Thoreau escreveu (dedicado às mui dignas virgens que, por medo ou interesse, adiam o prazer):  Gather your roses while you may”.
Vou, pois, dar uma volta. Está sol em Ribeira de Pena. Viva!

Ribeira de Pena, 01 de Julho de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.hoteldecervaboguinhas.com.]

Dia de procissão (glosa coimbrinha de um poema de A. L. Ribeiro)


A meio da procissão,
O anjinho de Belém
Troça do seu irmão
E pede um gelado à mãe.

Chora tanto o irmãozinho
Que a mãe, de tão zangada,
Esbofeteia o anjinho
Escandalizando a cunhada.

Soltam-se alguns dichotes
E abordam-se questões
De ciúmes e calotes
E até de vis traições.

A cunhada, que é obesa
E inveja na mãe bruta
A magreza e a beleza,
Chama-lhe cabra e puta.

O pai do anjo, ao escutar
A terrível discussão,
Sai já a correr do bar
Com a cerveja na mão.

Atrás dele, a empregada
Corre também a pedir
O dinheiro da rodada
Que acabara de servir.

O prior, a esbracejar,
Chama a PSP;
Depois, recusa falar
A repórter da TV.

O anjinho e o irmão,
Cheios de sede e fadiga,
Esperam só que a procissão
Acabe ou siga.

Ribeira de Pena, 30 de Junho de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.conversarempeniche.blogspot.com/]