Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

domingo, 6 de julho de 2014

Pedrulha



A Pedrulha é, em génese, uma aldeia na periferia de Coimbra. Com a expansão da cidade, tornou-se numa espécie de bairro encravado na urbe universitária. Um bairro cheio de particularidades folclóricas e humanamente extraordinárias.
A Pedrulha é também o lugar natal do Daniel Abrunheiro, meu Amigo de há décadas. É, digamos assim a sua Macondo.
Tive avô, tios e tias na Pedrulha, de modo que conheço muitas das caras que, em passando por lá, me cumprimentam e chamam pelo nome. O Daniel é, quase sempre, o meu anfitrião-mor, mas até sozinho lá passo sem jamais me sentir estrangeiro ou intruso.
Passei pela Pedrulha hoje. A humanidade deste mundo deixou-me impressões carregadas de graça e de profundidade. Ofereço-vos algumas.

1.           Para aceder da rua da Igreja à travessa do Plátano, tive de descer um pequeno lanço de escadas, em caracol, muito estreito. Ia com pressa, mas deparei-me com uma velhinha que morosamente descia também. Tive de esperar pela minha oportunidade de a ultrapassar. Finalmente, ela surgiu. Disse “Boa tarde” e “Com licença” - e passei-a pela direita. Ouvi, atrás de mim, um suspiro e um desabafo cheio de idade: “Ricas pernas!” Eu, que ia cansado da marcha, era ali invejado pela minha velocidade andarilha. Sim, tudo é relativo, senhor Einstein.

2.           Duas mulheres conversavam, à porta das respectivas casas sobre o desusado movimento de carros e pessoas. Não sabiam que havia, no Clube, o almoço dos antigos campeões de andebol, daquela equipa famosa da Pedrulha que brilhou no século XX, e de que fazia parte – admirai-vos, homens e mulheres de pouca fé! – o Daniel Abrunheiro. Uma das mulheres aventou que devia ser um torneio de cartas e que os homens eram doidos por aquilo. A outra falou em pouca vergonha e confusões prováveis. A primeira retorquiu (cito de cor): “Eu cá gosto de ver gente na Pedrulha. Sem a outra gente, que seria da gente?” Eis Aristóteles e Platão falando pela boca de uma anónima avó pedrulhense.

3.           Quando, entre gargalhadas fraternais, me despedia dos amigos, o Vitinho (ex-colega de liceu, hoje consideradíssimo profissional dos táxis) provocou-me: “Já?!” Lá lhe disse que ia ao hospital ver o Conceição. E então houve uma coisa simplesmente bela: toda a gente, numa espécie de preito uníssono, se fez ali subitamente séria e religiosamente respeitosa. O Vitinho pediu-me que fizesse chegar ao Amigo ausente um abraço e os votos de melhoras. Interiormente comovido, prometi que o faria. Fi-lo.

Isto é, eu gosto de Júlio Dinis. E gosto da Pedrulha.

Coimbra, 05 de Julho de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.paronamio.com.]

1 comentário:

Ana Cristina Cardoso disse...

Caro professor,

Sirvo-me deste meio para o saudar e também para simbolicamente saudar todos os outros professores marcantes que fizeram parte do meu percurso académico em escolas públicas periféricas e sem grande "pedigree" nos rankings do Ministério da Educação.
Tenho na minha memória uma meia dúzia de mestres que tive a sorte de conhecer e que realmente contribuíram para o meu crescimento e para que, desafiando as probabilidades, conseguisse trilhar um caminho longo, e muitas vezes solitário, que está prestes a terminar num doutoramento.
Uma das competências que me tem sido útil nesta jornada é a de me conseguir exprimir bastante bem pela escrita e isso devo-o a ter tido mestres como o professor. Embora actualmente o meu idioma de expressão seja o Inglês, o facto de ter um bom comando da minha língua nativa é sem dúvida estruturalmente importante.
Termino como se calhar deveria ter começado... apresentando-me: o meu nome é Ana Cristina e fui sua aluna na Escola C+S do Paião (concelho de Figueira da Foz) nos anos de 88/89 e 89/90; fiz sempre parte de turmas fracas em termos de desempenho escolar - eram as turmas das letras F para diante. Não tenho memória de quais foram as letras da minha turma nesses anos, mas lembro-me que as minhas classificações no final do ano 89/90 foram as 2.as melhores a nível de escola para o 8.o ano.
Um grande bem-haja, professor!