Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sexta-feira, 11 de julho de 2014

História Familiar (3)

[Conto de minha autoria,  incluído na obra 39 Poemas e Contos Contra o Racismo (Edição ACIDI)



Sei o que são namorados: é como a minha mãe e o meu pai juntos naquela fotografia do seu quarto, ambos com os rostos tão mais novos, quando ainda não eram a minha mãe e o meu pai. Um dia, disse-me a mãe, a Clara vai ser mãe de alguém como eu. (“Um dia, filho, a Clarinha também vai ser mãe de alguém como tu.”) Mas talvez a minha irmã venha a ser, um dia, mãe de alguém mais fácil do que eu.
O meu pai ouviu a minha mãe e ficou muito preocupado, vi-o na cara severa que deitou sobre o jantar. A mãe, aflita, murmurou-lhe alguma coisa (eu tentei ouvir, mas em vão). O avô e o meu irmão gargalharam, os dois muito longe da nuvem boa que devia haver sempre. O pai limpou os lábios num guardanapo azul e, sem dar tempo a gritos do avô ou do meu irmão, autorizou que o amigo da Clarinha viesse almoçar connosco no próximo domingo (“Podes trazer o teu namorado, filha.”). Domingo é um dia diferente. A mãe vai à missa, o pai trata da casota do cão, o meu irmão e a minha irmã dormem, quase sempre, até muito tarde e o avô, depois de cheirar o almoço, vai ao quiosque comprar um jornal com muitas páginas e muitas notícias.
Neste domingo, a minha irmã entrou na sala acompanhada de um Estranho. De um Outro. O meu irmão murmurou qualquer coisa, mas mais para dentro de si, nem eu consegui ouvi-lo. Talvez dissesse algo mau, como de costume. O meu pai cumprimentou o Outro com um passou-bem. A minha mãe deu-lhe dois beijinhos na cara (um beijinho em cada face). A minha irmã trouxe o Outro até mim e disse qualquer coisa, decerto algo doce, porque era a minha irmã falando comigo. Eu deixei que o Outro me tocasse no ombro direito, sem gostar disso, mas tão-pouco fugindo do toque. Aconteceu que senti que aquele Outro era parte, talvez, da minha irmã, isto é, não me pareceu que ele se tratasse verdadeiramente de alguém estranho. A Clara disse-me junto ao ouvido que o Outro era o seu namorado, o Carlos. “Este é o meu namorado. É o Carlos.” A minha irmã chama-se Clara. O Outro chama-se Carlos. Olhando de soslaio para o Outro, soube que ele tinha o mesmo sorriso da minha irmã. Tenho percebido que os sorrisos e a brutidade das pessoas são coisas contagiosas. No caso dos sorrisos, é algo bom, é até um prazer acolher rostos destes na minha nuvem. No caso da brutidade, é uma coisa assustadora. Basta pensar na raiva que passou, creio eu, do meu avô para o meu irmão. É como se de um bicho do mal pudessem nascer outros bichos, muitos bichos cheios de vontade de invadir a minha nuvem e talvez de me destruir.
Um dia, escondido num canto da minha garagem, dei com o meu irmão e o meu avô preparando a morte de uma aranha. A aranha era gorda e, decerto prevendo o que lhe ia acontecer, aninhara-se entre o armário das ferramentas e uma velha cadeira de metal. Pensei, na altura, que era assim também, em geral, a minha vida: acantonado, muito bem fechadinho na minha querida nuvem, à espera que os outros se fossem embora. A aranha também queria decerto que o meu avô e o meu irmão a deixassem quieta e em paz, na sua nuvenzinha de aranha de garagem. O meu avô e o meu irmão riam-se sem alegria. Vi o meu avô acender um isqueiro e aproximá-lo da aranha. E depois a aranha começou a arder. Sucedeu então que o meu irmão gritou, agarrando-se ao avô. Assustei-me de o ver tão assustado, mas não deixei de observar o resto da cena. Vi muitas aranhas, muitas aranhas pequeninas saindo da aranha sua mãe, todas correndo e morrendo quase ao mesmo tempo.



Tenho medo de aranhas. Não gosto de aranhas. Mas tive pena daquela porque, na verdade, o seu medo do meu avô era igual ao medo que, a cada domingo, eu costumava sentir. O meu avô chamou maricas ao meu irmão (“És um maricas, rapaz!”) Eu fui para o meu quarto abanar a cabeça, para trás e para frente, sentado aos pés da minha cama, da minha cama muito bem feita pela minha mãe. Tive de esperar muito tempo, dessa vez, até ao regresso da minha nuvem querida. Porque a minha nuvem quebra-se e recompõe-se, é assim. Digamos que é uma espécie de puzzle contra a desgraça. A minha nuvem protege-me, salva-me de morrer.

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