Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sábado, 10 de novembro de 2012

Crónica da sazonal melancolia

Da mesa da cozinha vê-se a orografia ainda outonal que o calendário previa: uma montanha algo desgrenhada, com franjas verdes-castanhas-negras-amarelas e um fio de nuvem no topo escapando-se rumo ao céu. A totalidade vista parece-me um segmento de pintura triste, como se o artista houvesse aqui retratado alguma coisa outra que, não se vendo, também existe e é mais forte.
Assim eu. Por dentro do cansaço, escondido das olheiras, anterior ao frio, mais cavernoso que a teimosa tosse, há este outono interior que tenho sido desde menino.
Dou por mim a fazer riscos no papel. Como um militar involuntariamente na guerra africana ou um injustiçado prisioneiro de longa duração, conto os dias que faltam, no calendário, para a liberdade. Isto é, para o sol.
Este governo deles, esta gripe minha, estes ignorantes e estes fanáticos com poder; a falta de literatura nas conversas dos Cafés; o Sporting a cair para um abismo qualquer; o tempo esboroando-se ante o meu reumatismo mental – é tudo uma forma de outono, quase inverno. Que há-de um homem fazer senão resistir, esperar, ir estando, estar sendo?
Leio (por exemplo) Martin Amis, cubro-me de roupa, aqueço água para a botija, bebo o chá da MP e degusto torradas, distraio-me com uma série cómica, falo brevemente com a VL e a minha Mãe, escrevo (pouco, quase nada). A montanha escurece, o sino da igreja toca, o dia passa.
Faltam 140 dias para a primavera. Faltam 263 dias para o verão.

Ribeira de Pena, 10 de Novembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.cssernancelhe2.com.]

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Outono(mia)

De roupas mudou já o arvoredo
(outonomia triste do que sei) –
Também me dispo eu do verão, que cedo
Deveio o inverno todo que fiquei.

Cabeceiras de Basto, entardecer de 06 de Novembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.essaseoutras.xpg.com.]

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

VII Concurso de Conto Infantil - Discurso de Júri

    Fiz, uma vez mais, parte do Júri do VII Concurso Literário de Conto Infantil da Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto. A cerimónia de entrega de prémios decorreu no passado sábado, dia 27 de Outubro. Ficou a meu cargo a elaboração do discurso do júri. Como percebi, entretanto, que esse texto não aparecerá em qualquer (outro) meio de comunicação social, decidi publicá-lo aqui, no "Muito Mar", salvando-o da efémera existência a que, de outro modo, estaria votado.

Cabe-me a honra de, nesta ocasião, em nome do Júri do VII Concurso Literário de Conto Infantil de Cabeceiras de Basto - composto pela Dra. Adelina Pinto, pela Dra. Fátima Marinho e por mim próprio, Joaquim Jorge Carvalho, com a preciosa assessoria da Dra. Maria José Alves, bibliotecária -, fazer o discurso de apresentação formal dos contos vencedores, circunstância que aproveito para algumas outras (breves) considerações acerca da literatura e das artes, da cultura, da condição humana em geral.
Antes de mais, é de toda a justiça cumprimentar a Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto pela saudável teimosia com que, pela sétima vez consecutiva, leva a cabo este concurso. Numa altura em que os ventos económico-financeiros não são de feição, a aposta na cultura ganha contornos de especial relevo.
Numa bela crónica de Alice Vieira (por sinal, ela própria autora de créditos firmados na área da literatura infantil-juvenil), tomei pela primeira vez conhecimento de um episódio alegadamente passado com Winston Churchill, primeiro-ministro inglês durante a II Guerra Mundial. Discutia-se a iminência de fatais cortes no orçamento de muitos ministérios, de modo a concentrar-se a maioria dos recursos no esforço de guerra contra os nazis. Um assessor do estadista sugeriu-lhe que cortasse forte e feio nas verbas previstas para a cultura. Churchill não percebeu de imediato a sugestão e o assessor concretizou a sua ideia: de todos os orçamentos sectoriais, o menos prioritário, naquele contexto, era o da cultura. Churchill - que foi também Prémio Nobel da Literatura - respondeu-lhe (cito livremente):

- Esta nossa guerra é contra a barbárie, a ignorância, a brutidade. Se cortarmos na cultura, por que coisa estaremos a lutar?

Eis uma história que a muitos dos nossos governantes explicaria algo.

Um concurso literário celebra, logo à partida (e simplesmente por existir) a utilidade e o interesse da literatura. Deixai que vos fale um pouco deste amado tema.
Tive a oportunidade de, durante três anos, no âmbito de um Doutoramento em Literatura Portuguesa, estudar a obra de um grande escritor português do século XIX, Júlio Dinis, infelizmente nem sempre suficientemente valorizado pelo cânone literário português. Nos seus livros (sobretudo, nos seus contos e romances), destaca-se uma certa dimensão educativa que, pelo menos para jovens leitores, assume uma importância indiscutível. Não me choca a ideia de, associada ao relato de histórias, à enunciação de espaços e circunstâncias divertidas ou dramáticas, encontramos sábia e subtilmente edificados os valores da justiça, da honestidade, do empenho, dos sonhos, da bondade e da grandeza da condição humana.
Fará decerto sentido lembrar este aspecto muito recorrente na narrativa dinisiana (premiar o bem; castigar o mal) num discurso – como este - acerca de trabalhos inscritos na área do conto infantil. Aqui, ainda de modo mais claro, afigura-se fundamental que, concomitante às histórias narradas, haja uma componente educativa e, de modo geral, eivada desse optimismo humanista que podemos explicar como a possibilidade de, em cada momento, ser possível aos indivíduos a evolução e crescimento pessoal, a sempre possível redenção, a iniciática descoberta da virtude, a construção de um futuro mais agradável e mais justo.
No romance A Morgadinha dos Canaviais, de Júlio Dinis, há uma personagem chamada Manuel Bernardo (aliás, conselheiro Manuel Bernardo), que é o pai da Morgadinha. Este homem é deputado e, durante meses a fio, vive em Lisboa, onde está o parlamento, apenas visitando a casa da família em raras ocasiões (como o Natal ou as férias estivais). A sua vida é feita de intrigas políticas, tácticas, jogos de interesses, amabilidades convencionais, cobranças e cedências, cinismo utilitário. Em jovem, foi um idealista, com ideias muito claras sobre a honra, a ética, a justiça social, o progresso, um sonho de liberdade e de abastança gerais; ao dobrar os quarenta anos, tinha consciência das mudanças em si operadas, isto é, dos efeitos iniludíveis de alguma corrupção da alma, de alguma degradação do carácter.
Mas havia sempre um momento em que, despido das obrigações mudanas, sociais, político-partidárias, este homem se sentia novamente livre, puro, formoso: era quando entrava na casa da família, algures no Minho, e toda a existência regressava a uma simplicidade querida, bondosa, verdadeira. O homem, então, longe da hipocrisia da vida parlamentar, voltava interiormente a ser a pessoa que outrora fora e, já sem a preocupação das conveniências aparentes, era feliz, profundamente feliz.
Maria Irene Ramalho dos Santos (emérita professora de literatura na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra)  ensinou-me a dividir, de modo retoricamente muito produtivo, a nossa existência em dois planos – mundo político e mundo poético. Por mundo político, devemos entender o mundo da gestão da “polis”, isto é, o das rotinas necessárias que constituem as regras e os procedimentos da vida económica, da convivência social, do cumprimento dos nossos deveres e do exercício dos nossos direitos. Por mundo poético, devemos entender as pontuais fugas à normalidade cansativa e opressora, a prevalência do profundo (e, muitas vezes, adiado) amor sobre a fria razão, a perseguição do sonho, a autorização de momentos (pessoais, só nossos) de prazer e de beleza que não cabem no mundo político.
Precisamos do mundo político, claro: precisamos de alimentação, de roupas, de casa, de segurança, de serviços essenciais como a educação, a justiça, a saúde, a governança. Mas igualmente precisamos de mundo poético: de música, de pintura, de dança, de literatura, etc. – espaços de criação e fruição de beleza e de verdade, territórios da linguagem maior que nos diz e nos aumenta, nos distingue dos animais sem alma. Não sobreviveríamos, enquanto civilização, sem o mundo político. Mas também não viveríamos verdadeiramente sem o mundo poético, que nos oferece diversão, consolação, comunhão, beleza - e que igualmente permite a eterna celebração da nossa condição de humanidade.
Ao mundo poético, a este reduto querido de Manuel Bernardo, na Morgadinha (e nosso), eu gosto de chamar uma espécie de aconchego mínimo de que a condição humana essencialmente precisa. No plano da realidade física, haverá contextos específicos que garantam esta paz, esta felicidade (família, clube, amigos, desporto). Mas um dos mais seguros e eficazes territórios de felicidade que conheço é o do mundo das artes, entre os quais deliberadamente privilegio o da literatura e, em especial, o da narrativa.

A literatura é um território da língua em que a profundidade, a originalidade e o alcance da linguagem são maiores. E a narrativa compreende a ordenação do mundo (contar é ordenar); compreende a iluminação metonímica da vida; e compreende ainda a maravilhosa possibilidade de, escrevendo ou lendo, vivermos outras vidas.
Lembro aqui, à laia de formoso exemplo, o conto O Cavaleiro da Dinamarca, de Sophia de Mello Breyner Andresen. Essa narrativa assenta no sonho de um dinamarquês corajoso que quer ir à Palestina. Nós, leitores, vamos com a personagem e, através dos sucessivos episódios e histórias secundárias metidas na história principal, viajamos por lugares onde nunca estivemos e onde talvez nunca venhamos a estar; acrescentamo-nos de informação e de imaginação; percebemos melhor o mundo, a vida, a nossa própria condição de indivíduos com sensações, sentimentos e sonhos. No final do conto de Sophia, o Cavaleiro regressa a casa, não sem antes sofrer as agruras do caminho, os perigos da noite e a dureza do clima. De novo em casa, tudo parece regressar à normalidade, mas não: o Cavaleiro é outro, carregando no seu cérebro e no seu coração a memória dos lugares que viu, das emoções que experimentou, das lições que aprendeu. O mesmo sucede com os leitores que, acabada a leitura, regressam a si próprios, dessa viagem, indivíduos mais ricos, mais experientes, mais sábios.

A escrita de um conto implica a obediência (modal e genológica) a regras essenciais, directa ou indirectamente enunciadas, aliás, nos critérios de classificação tidos em conta pelo Júri. De maneira sucinta, diremos que o autor deverá ser capaz de, num número reduzido de páginas, edificar um contexto ficcional compreensível, coerente, tutelado por alguma espécie de lógica, ainda que diferente da lógica que na vida real conhecemos. E esse novo mundo, digamos assim, será o palco da história narrada.
Acresce que, neste caso específico do conto infantil, como já atrás se sublinhou, será conveniente que a um relato idealmente interessante de episódios corresponda uma concomitante e estratégica (ainda que subtil) intenção pedagógica. Poderá o público leitor, eventualmente, acrescentar ao prazer de conhecer/viver uma história extraordinária o potencial prazer de aprender (ou re-aprender) alguns conceitos, princípios e valores interessantes (a honestidade, a solidariedade, a tolerância, o respeito pelos mais velhos, a importância de tratar bem a natureza, etc.).
A esta luz, os contos que o Júri decidiu distinguir foram os que, de facto, mais corresponderam às exigências e expectativas artístico-literárias e genológico-modais do conto infantil. Tratou-se de uma tarefa exigente, esta, porque a avaliação do objecto literário comporta uma margem de subjectividade que, por muito balizada que esteja do ponto de vista dos critérios de classificação, tem sempre forçosamente a ver com o gosto de cada leitor(a). E, não obstante ser verdade que a nossa decisão foi relativamente fácil, por ter havido nos jurados uma rápida comunhão de pontos de vista, a verdade é que cabe aqui uma palavra de admiração e reconhecimento dirigida a todos os candidatos não premiados. Com efeito, outros contos interessantes estiveram a concurso - e o facto de não terem sido distinguidos com prémio não significa por si só que, no plano absoluto do mérito literário, sejam de menor qualidade; o escalonamento decorre da decisão de um Júri específico que, no exercício circunstancial da sua autoridade, fez as suas opções. Apenas isso.

(Entre parêntesis: eis por que razão é tão importante proceder, com regularidade, à renovação de um Júri de um concurso desta natureza – dar azo a que outras sensibilidades, outros ângulos de análise, outros gostos possam participar nestes concílios deliberativos.)

Foi atribuído o terceiro lugar ao conto “Fábula com fim incerto para um de dois moluscos terrestres”, da autoria de Ema Carreira, que assinou com o pseudónimo de Docelina. Trata-se de um conto bem construído, rico em termos de vocabulário e eivado de curiosos apontamentos irónicos (talvez nem sempre adequados a um público muito jovem). A história compreende uma aventura com um caracol e uma lesma e conclui-se com o castigo desta última personagem insuportavelmente vaidosa e arrogante. Contudo, esta dimensão edificante é talvez prejudicada pela severidade e crueldade da punição relatada (o caracol não encontra, na sua casca, lugar para a lesma e, indiferente ao sofrimento da desgraçada, deixa-se confortavelmente adormecer).
Este conto apresenta uma epígrafe de La Fontaine (“A fábula é uma pintura / em que podemos encontrar o nosso próprio retrato.”). O Júri apreciou a erudição, mas considerou dispensável a inclusão o paratexto no enunciado.
Foi atribuído o segundo lugar ao conto “Uma amizade para a vida”, de Isabel Maria Ferreira Bóia, assinado com o pseudónimo de Gabriela Evander. O texto (que perigosamente lembra um filme de sucesso intitulado “Um porquinho chamado Babe”) relata a amizade improvável entre uma menina e um porco. Logo no início do enunciado, a voz narradora sublinha o preconceito do pai de Aurora face ao animal: “Para ele, o porco só servia para comer. Onde já se vira um porco ser animal de companhia?”
Logo a seguir, a narração oferece-nos a visão (distinta, incomum, diferente) da filha: “Aurora não pensava como o pai. Para ele, aquele ser, por quem nutria um carinho especial, não era um porco, mas sim o seu Malaquias.”
É sobre esta base - a da diferença entre a ideia do pai face ao porco (uma ideia geral, fria, objectiva, assente na tradição e no olhar distante) e a ideia da filha (uma ideia que decorre de uma relação próxima, afectuosa, pessoal, subjectiva) – que se constrói o conto. Muitas peripécias conduzirão o pai de Aurora ao reconhecimento (ou aprendizagem) de que o porco, nesta história, era mais do que um simples animal para comer. Era, como dizia a filha, gente com nome (o “Malaquias”). A viagem – dificultosa e recheada de aventuras – é uma edificante jornada entre o preconceito e a verdade. Aquilo que, pelo coração, já a menina Aurora entendera (que a essência dos seres é mais importante que a sua aparência) é, no final da história, percebido também pelo seu pai.
Foi atribuído o primeiro lugar ao conto “Martinho”, de Flávio Miguel Fraga Silva, que assinou o seu trabalho com o pseudónimo Miguel dos Ventos. Numa primeira leitura, o texto parece não corresponder à forma tacitamente entendida como correcta, no universo convencional do texto narrativo – aparece em verso, constituindo-se de quadras nem sequer sempre perfeitas do ponto de vista da métrica ou da rima. Contudo, ao longo da leitura, o leitor é mergulhado numa aventura extraordinária, recheada de peripécias surpreendente e desconcertantes, ora divertidas ora dramáticas, explicáveis à luz de uma certa tradição de conto fantástico ou maravilhoso que nunca passarão de moda.
Numa segunda leitura, apercebemo-nos da condição eminentemente teatral do conto, que convida – pela leitura expressiva ou pela sua concretização em palco – ao velho mas sempre querido exercício da arte de contar histórias (consabida irmã gémea da arte de ouvir histórias). Martinho e o seu leão de brincar (verdadeiro na imaginação do rapaz e na lógica ficcional da própria história narrada) vivem uma odisseia que, em termos essenciais, provará uma verdade muito simples: “Aquilo que aprendi / Foi que nunca nunca mais / Voltarei a sair de casa / Sem dizer nada aos meus pais”.
Mas talvez essa lição (apenas um leve esvoçar pedagógico da narrativa) foi pretexto para uma rica, colorida, vertiginosa aventura que aportou ao enunciado diferentíssimos lugares, variadíssimas situações, estranhíssimas criaturas (com suas peculiaríssimas formas de falar). Na própria reunião final do Júri, propusemos que este texto fosse apresentado ao público de forma, tanto quanto possível, dinâmica, teatral, espectacular. Creio que esse desiderato foi tido em conta, como adiante se provará.

A terminar, uma nota talvez pessoa. Morreu, no final da semana passada, Manuel António Pina, ele próprio cultor da disciplina do conto, mas também do texto dramático e, sobretudo, da poesia. Descobri-o há uns doze anos e ele era (e é), para mim, acima de tudo, um dos maiores poetas da nossa contemporaneidade.
Costuma dizer-se, nestes casos, que a arte sobrevive ao artista. Julgo que este clichê, apesar de clichê, compreende uma efectiva verdade: Manuel António Pina ofereceu-nos, com a sua literatura, um espaço de excelência linguística, de beleza de raciocínio e sensibilidade, de iluminação – que durarão para lá da sua morte, para lá da nossa morte.
Pina, como artistas e escritores em geral, ofereceu-nos – à sua maneira – alguns territórios de aconchego (como os que referi no início este discurso). O melhor de si está nos livros que escreveu. Ele cala-se, agora, como sempre se cala um escritor para que, depois, possam falar os próprios textos, os próprios livros. Também é esse, em determinada altura, o dever do crítico de literatura.
Leio-vos, antes de me calar, um poema de Pina, intitulado – nem de propósito – “NA BIBLIOTECA”. Escutai-o, por favor, como tributo ao Poeta que morreu na semana passada e, obviamente, uma homenagem sincera à literatura em geral. Notai, por obséquio, esta nota (simples, mas essencial) sobre a indispensabilidade de haver leitores para haver livros – ou de não haver cantores nem canto se não houver quem o(s) ouça
O que não pode ser dito / guarda um silêncio / feito de primeiras palavras / diante do poema, que chega / quando já a incerteza e o medo se consomem / em versos alexandrinos. / Na biblioteca, em cada livro, / em cada página sobre si / recolhida, às horas mortas em que / a casa se recolheu também / virada para o lado de dentro, / as palavras dormem talvez, sílaba a sílaba, / o sono cego que dormiram as coisas / antes da chegada dos deuses. / Aí, onde não alcançam nem o poeta / nem a leitura, o poema está só. / E, incapaz de suportar sozinho a vida, canta.(Manuel António Pina, Poesia, saudade da prosa – Uma Antologia Pessoal, Assírio & Alvim, 2011.)
Calo-me enfim, para que fale, já a seguir, em discurso directo, o texto vencedor do VII Concurso Literário de Conto Infantil de Cabeceiras de Basto.
Parabéns à Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto pela iniciativa.
Parabéns aos premiados e, em especial, ao autor do trabalho que elegemos vencedor. Viva a literatura portuguesa. Viva Manuel António Pina! (E viva o professor Manuel Carneiro, que foi – e é – meu querido cúmplice em matéria de vidas e literaturas!)

Ribeira de Pena, 26 de Outubro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.aterceira noite.org.]

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes

Soeiro Pereira Gomes nasceu no dia 14 de abril de 1909 e morreu no dia 05 de dezembro de 1949.
Ao longo da sua vida, não chegou a publicar muitos livros, mas nem por isso deixou de ganhar um lugar de grande relevo na literatura portuguesa do século XX.
Pertenceu a uma corrente de escritores neo-realistas, isto é, autores que – numa espécie de regresso ao realismo literário do século XIX –  pretendiam inscrever, na sua arte, marcas da vida real que permitissem aos leitores uma mais imediata e franca identificação com temas, acontecimentos e personagens.
O romance Esteiros conta a história de um rapaz (o “Gaitinhas”), que, apesar de excelente aluno, é obrigado a desistir da escola por ser pobre. O pai é emigrante, no estrangeiro; a mãe é tuberculosa – e Gaitinhas não tem outro remédio senão ir trabalhar.
Apesar das dificuldades económicas e dos múltiplos motivos para a tristeza e até o desespero, o rapaz tem também espaço para se divertir com os amigos, frequentando festas populares, indo ao cinema, tocando alegremente a sua “gaita de beiços”.
Toda a história é uma espécie de grito contra as injustiças de uma sociedade desigual e aviltante, que condenava os pobres a um destino de escravidão e indignidade.
O trabalho infantil e juvenil, hoje felizmente ilegal e de modo geral combatido pelos países desenvolvidos, é um dos temas fundamentais do livro. Não por acaso, o autor dedica a sua obra “A todos os homens que nunca foram meninos”.
Li o romance aí pelos meus doze anos e já o reli muitas vezes.
Recomendo-o agora a todos os meus amigos (alunos e colegas, sobretudo). É que deixar por ler um grande livro é condenarmo-nos à mais triste das ignorâncias - a ignorância voluntária.

Arco de Baúlhe, 26 de outubro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[Texto expressamente elaborado para a Biblioteca da minha escola, no sentido de contribuir para a divulgação de obras literárias que, no entender dos professores/educadores, vale muito a pena ler.]

domingo, 28 de outubro de 2012

Saudades do professor Manuel Carneiro


Coube-me escrever o discurso para a cerimónia de entrega de prémios do Concurso Literário de Conto Infantil de Cabeceiras de Basto. Para o final do enunciado, agendei uma singela homenagem ao escritor Manuel António Pina, um dos grandes poetas da nossa língua. Achei justo o tributo e, do ponto de vista da retórica em causa, indicado para aquela ocasião: afinal, tratava-se de, à roda do escritor-jornalista falecido recentemente, celebrar a ideia de literatura (e, em termos mais latos) o interesse e a utilidade da própria cultura.
Ao chegar à biblioteca municipal, no Arco, uma notícia terrível interromperia aquela gloriosa tarde de sol. "Morreu o professor Manuel Carneiro..."
O professor Manuel Carneiro foi meu circunstancial "aluno" na Universidade Sénior; meu actor na peça "Julieu e Rometa" (fazendo, com graça e competência, o papel de Julieu); meu colega no Júri do Concurso Literário de Cabeceiras de Bastos. E foi, sobretudo, um prestigiado e  admirado companheiro, cúmplice do bom humor, do gosto pela arte e pelo conhecimento, do amor pela língua portuguesa.
À pressa e sob esse profundo atropelamento que é perdermos uma pessoa verdadeiramente querida, juntei à homenagem a Pina - no discurso - uma homenagem (não menos sentida) ao professor Manuel Carneiro.
A vida e a morte não dependem só da nossa vontade. Mas o esquecimento ou a lembrança, sim.
Por mim, à falta de melhor alternativa, não deixarei que me morra a memória desta extraordinária pessoa.
Amigo Manuel Carneiro, foi uma grande honra e um grande prazer conhecê-lo. Abraço eterno.

Coimbra, 28 de Outubro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto - que o professor Manuel Carneiro me enviou, há anos, via Facebook - foi tirada na noite do espectáculo teatral que tive a oportunidade de encenar com os queridos actores da Universidade Sénior, há já quatro anos, no Auditório do Mercado Municipal.]



sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Acaso ocaso

O aluno desenha no papel um coração.
Depois faz do papel um avião
E lança-o no ar, mas não
Voa e cai no chão.

 

Arco de Baúlhe, 26 de Outubro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.zazzle.com.]

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Aurora


A aurora que falta é uma razão definitiva
para não morrer.

Arco de Baúlhe, fim d'aulas, 25 de Outubro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.olhares.sapo.pt.]

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Odor (ó dor!)


À noite, na infância, ouço vozes estranhas. A mãe vem ao quarto e pede-me que durma no sofá. No corredor, diviso gente, malas, um casaco comprido pendurado no bengaleiro. A causa do desassossego chama-se Manuel do Redondo e é amigo do avô, pai do pai. É um velho, como o avô (o avô dirá que se trata de um rapaz do seu tempo). Vem da aldeia para uma consulta. O pai sussurra à mãe que o velho está muito doente. De modo que, por causa do intruso nocturno, eu durmo na sala.
De manhã, bebo o habitual café com leite antes da escola. A mãe vai ao meu quarto buscar-me a roupa e a pasta e explica-me que o velhinho e o pai saíram muito cedo para a consulta.
Sigo para a escola e noto que a bota esquerda está molhada. Não chove, contudo, pelo que é um mistério esta humidade no meu pé esquerdo e aquela mancha mais escura no peito da bota. Ando na segunda classe, a professora chama-se Dona Angélica, gosto da Beatriz e da Manuela João. O meu maior amigo é o Jaime Alves dos Santos. Ele comenta, entre risos, que cheira a mijo na sala. A professora funga e olha, desconfiada, para os meus dois colegas mais pobres.
Ao almoço, revejo o velho. Está desanimado com a conversa do médico e regressará nessa tarde, de camioneta, para sua a aldeia. (A aldeia onde, meses depois, se realizará o seu funeral.)
A mãe pergunta-lhe se dormiu bem. Ele garante que sim. E pede desculpa por, na pressa da manhã, se ter esquecido de despejar o penico. Eu acho estranha aquela conversa porque, ao contrário do que se passava na casa dos avós, não havia penicos em minha casa. O meu pai explica-nos, enquanto o velho arruma a mala lá dentro no quarto, que a doença era nos intestinos mas talvez afectasse também a mente. E suspira:
- Coitado do ti' Manel.
Eu volto para a escola, depois. Ao sair, noto que a bota esquerda tresanda ainda a urina e, por isso, troco de calçado.


Ribeira de Pena, 22 de Outubro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.portocity.olx.pt.]

sábado, 20 de outubro de 2012

Tributo (triste) a Manuel António Pina

Manuel António Pina é um dos grandes poetas contemporâneos da língua portuguesa. Mais: enquanto criador de uma escrita tão lúcida-original-inteligente-bela, trata-se de um dos grandes escritores de sempre, pelo menos segundo a bitola da minha própria experiência leitora e do meu coração.
Bem sei, quando morre alguém de valor notório, não obstante os eventuais ódios rasteiros que andam à roda de toda a gente (importante ou não), é comum abrir-se logo a torneira dos clichês: saudades muitas, imortalidade garantida, perda irreparável. Pois bem, senhores, também os clichês podem ser verdades profundas.
Creio que Pina foi um destes raros casos que sucedem na cultura de aparecer um autor que trabalha e simultaneamente refresca-enriquece-aumenta a língua utilizada como barro da (sua, pessoal) arte literária.
Nos últimos dez anos, tenho devotadamente lido e divulgado a poesia deste singularíssimo escritor que, a par de Ruy Belo e de Daniel Abrunheiro, me parece o que de mais interessante aconteceu na poesia do meu tempo. O autor de Nenhuma palavra e nenhuma lembrança conseguiu o milagre de abrir as portas dos seus versos à música e às palavras dos dias reais. A realidade vê-se melhor ao ritmo dos seus poemas; a sua poesia incorpora ritmos e palavras da rua, sem que essa profanação voluntária e competente prejudique a sagrada formosura das composições poéticas. Os poemas de Pina são sempre uma novidade, mas – e eis o génio! – parece sempre tudo simples e natural ao ler e ao dizer.
Como bem escrever a grandeza e originalidade do poeta sem cair na poça e na lama de clichês?
Por mim, fico-me para já pela inscrição, aqui, deste singelo testemunho: muitos versos de Manuel António Pina iluminaram e mudaram a minha forma de compreender e dizer o mundo; de compreender e dizer a existência; de compreender e dizer o amor.
Não é isso, vo-lo juro, coisa pouca!

PS: O director do JN, Manuel Tavares, querendo homenagear o jornalista-escritor-camarada-amigo, decidiu que o espaço da coluna “Por outras palavras”, que Pina todos os dias assinava naquele jornal (na última página), ficará doravante em branco. É um tributo nobre; mas seria talvez mais bonito e mais útil que, nesse espaço, aparecesse a partir de agora, diariamente, um poema do mesmo autor. Decerto os herdeiros do poeta não se oporiam à ideia – e muitos, que de Manuel António Pina apenas conheciam as maravilhosas crónicas, teriam ensejo de conhecer também a sua poesia de primeiríssima água.

Ribeira de Pena, 20 de Outubro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.osol.pt.]

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Montra


 
 
Uma lágrima pluvial desliza obliquamente, de cima para baixo, à minha frente, no lado exterior do vidro que há entre o olhar e a rua. Leva a cair o tempo de um sereno café, no remanso suspenso da lida. A televisão debita as chagas da crise e muitas das cínicas retóricas do nosso desgoverno. A lágrima repousa, depois, no chão cinzento do passeio fronteiro à escrita. Gravo no papel a precária imortalidade deste momento cósmico: eu e o fio de chuva tombando. Isto é, o destino oblíquo da matéria viva em geral, rumando ao horizontal fim que há para tudo, todos.

 
Arco de Baúlhe, 19 de Outubro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.downloadswallpapers.com.]

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Chuva

Em momentos de nostalgia, Deus recolhe o Sol
(que é Deus a rir-se em forma de criança)
E pode acontecer que chova.
Não deixa de ser coisa divina
A bondade caindo do céu
Mas também me sucede muitas vezes
Entrar a chuva por dentro de mim
E doer-me a ausência de sol como se fosse
Para sempre.

Arco de Baúlhe, 18 de Outubro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, na wikipédia.]

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Esperar o quê


Múrmura vai caindo a chuva
Sobre as casas, os carros, mim correndo –
Vejo-a da mesa habitual, na pastelaria
Por entre o vapor do café e este reformado
Ininterrupto como um gerúndio triste.

A minha paciência já foi, Senhor, maior –
Agora é uma só coisa cardiovascular
De ritmo nem sempre certo, nem sempre doce
Coisa menos dada à constatação da beleza
Que do desemprego.

E vou adivinhando nos transeuntes visíveis
Cúmplices dores e apagamentos de todos.
Rareiam, aliás, os sorrisos pela rua acima
Por haver aqui muita mercearia falida
Muita penúria de finanças e de sonhos.

A esperança emigrou para outro qualquer sítio
Ou tempo.

Arco de Baúlhe, 17 de Outubro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.jmaf-mymobile.blogspot.com.]

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Surrealismo doméstico


O governo explica cinicamente que o assalto feito, pela via dos impostos, visa afinal um propósito bondoso: acudir às necessidades do Estado. A retórica compreende uma delicada noção – a de que é legítimo optar por esta brutidade em determinado contexto de urgência e desespero.

Espera-se que esta tese faça o seu caminho. Os que, por falta de dinheiro, não estejam capazes de fazer face aos seus compromissos (casa, cartões de crédito, transportes, alimentação), à luz do superior ensinamento tutelar, assaltarão talvez bancos e supermercados, fugindo depois em táxi ou autocarro por aí à mão – sem pagar, naturalmente.

 
Arco de Baúlhe, hora d’almoço, 12 de Outubro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.delagoabayword.wordpress.com.]

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Sair daqui


Ronaldo voltou a marcar, em Espanha, ao serviço do Real Madrid.
O ministro Gaspar e o consultor Borges ainda mandam em Portugal.
Assim vamos. Prazer ali, nojo aqui. Vida: coisa delicada, complexa, desconcertante, desigual, para sempre de altos e baixos.

Ribeira de Pena, 09 de Outubro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com o devido respeito, em http://www.abola.pt.]

sábado, 6 de outubro de 2012

Infinito não


De muitas mortes hei morrido antes do Fim;
De muitas vidas se tem feito o vivo enlevo.
Infinito é quant' há depois de mim
Mas isso, por estar vivo, não descrevo.

Arco, 04 de Outubro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (representação do sonho, por Dali) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.complexowill.blogspot.pt.]