segunda-feira, 22 de outubro de 2012
Odor (ó dor!)
À noite, na infância, ouço vozes estranhas. A mãe vem ao quarto e pede-me que durma no sofá. No corredor, diviso gente, malas, um casaco comprido pendurado no bengaleiro. A causa do desassossego chama-se Manuel do Redondo e é amigo do avô, pai do pai. É um velho, como o avô (o avô dirá que se trata de um rapaz do seu tempo). Vem da aldeia para uma consulta. O pai sussurra à mãe que o velho está muito doente. De modo que, por causa do intruso nocturno, eu durmo na sala.
De manhã, bebo o habitual café com leite antes da escola. A mãe vai ao meu quarto buscar-me a roupa e a pasta e explica-me que o velhinho e o pai saíram muito cedo para a consulta.
Sigo para a escola e noto que a bota esquerda está molhada. Não chove, contudo, pelo que é um mistério esta humidade no meu pé esquerdo e aquela mancha mais escura no peito da bota. Ando na segunda classe, a professora chama-se Dona Angélica, gosto da Beatriz e da Manuela João. O meu maior amigo é o Jaime Alves dos Santos. Ele comenta, entre risos, que cheira a mijo na sala. A professora funga e olha, desconfiada, para os meus dois colegas mais pobres.
Ao almoço, revejo o velho. Está desanimado com a conversa do médico e regressará nessa tarde, de camioneta, para sua a aldeia. (A aldeia onde, meses depois, se realizará o seu funeral.)
A mãe pergunta-lhe se dormiu bem. Ele garante que sim. E pede desculpa por, na pressa da manhã, se ter esquecido de despejar o penico. Eu acho estranha aquela conversa porque, ao contrário do que se passava na casa dos avós, não havia penicos em minha casa. O meu pai explica-nos, enquanto o velho arruma a mala lá dentro no quarto, que a doença era nos intestinos mas talvez afectasse também a mente. E suspira:
- Coitado do ti' Manel.
Eu volto para a escola, depois. Ao sair, noto que a bota esquerda tresanda ainda a urina e, por isso, troco de calçado.
Ribeira de Pena, 22 de Outubro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.portocity.olx.pt.]
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