Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

terça-feira, 26 de junho de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (142)


Selva Rodoviária

Poucas situações acordam tão facilmente a besta que há em mim como os automobilistas irresponsáveis, capazes de pôr em perigo a sua vida e – pior – a dos outros com manobras estúpidas. 
Não são precisos grandes estudos para perceber, nos comportamentos dos condutores perigosos que assassinam quem calha, um conjunto óbvio de patologias, desde a psicológica necessidade de concitar atenções e admiração dos transeuntes, até à ilusão demencial de ser o melhor (o mais rápido, o mais habilidoso, o mais tudo), nascido para espantar a plebe. Vejo estes pedregulhos mentais por todo o lado: em auto-estradas, em ruas da minha cidade, em vias secundárias que me ligam a residência à vila onde trabalho. Já me salvei várias vezes da morte (in extremis) travando a fundo ou fugindo para a valeta, de modo a que um anormal completasse certa ultrapassagem proibida sem chocar com o meu carro. Já evitei, gritando ou buzinando desesperadamente, o atropelamento de peões (incluindo o da minha Filha), só por ter adivinhado, a tempo, que a loira do carro cinzento não pararia na passadeira. 
Com a idade, dou-me pior com a estupidez e chego a desejar - Deus me perdoe - a morte ou um qualquer acidente exemplar dos que vertiginosamente desafiam a sorte, sem respeito por leis ou, de modo mais lato, pelos outros. 
Regresso, à boleia deste tema, à diferença que me habituei a sublinhar, em conversas de amigos ou em parágrafos académicos, entre o conceito de imoralidade e o de amoralidade. Ambas as palavras têm prefixo, mas o significado que “i” e “a” aportam à palavra-base é diferente. O indivíduo imoral é aquele que comete o crime sabendo que está a cometer um crime. Neste contexto, pode acontecer que o imoral sinta, depois, remorsos. O indivíduo amoral é quem comete o crime sem ter a mínima noção de estar a cometer um crime, marimbando-se para questões de justiça, culpa, falhas éticas. No ser amoral, percebemos uma absolutíssima indiferença pelas consequências dos seus actos, pelos direitos dos outros, pela lei, pela verdade, pelo Bem. Como eu odeio, senhores, os amorais do volante! 
Dir-me-ão: atenção, que a ausência de moral pode ser desculpável; por exemplo, os bêbedos e os drogados devêm inimputáveis por não terem consciência dos seus actos. Respondo eu, fartinho de ser tolerante: são culpados de conduzir bêbedos ou drogados. Ponto final. 
Os antigos acreditavam muito no poder das pragas que se lançassem (silentes ou verbalizadas) – e eu confesso uma esperança mórbida: talvez haja alguns assassinos do volante que, nos últimos anos, tenham sofrido azares diversos, como uma queda, um roubo, uma agressão inesperada, uma doençazita demorada e dolorosa qb, etc. Quiçá esses irritantes contratempos sejam produto das minhas lancinantes pragas, expressas no interior da viatura (enquanto testemunho cabriolices irresponsáveis de condutores símios), à mesa do Café (enquanto leio descrições de acidentes criminosos), em casa (enquanto escrevo uma crónica, lembrando-me da minha Filha quase atropelada por uma cavalgadura chique), ou em declarações à polícia (depois de uma corrida de auto-estrada me ter dado cabo do carro e quase me ter matado). 
Bem sei, isto de rogar pragas é prática pouco cristã. Mas não é natural que, perante as tropelias do Diabo, até um santo perca a paciência? 

Vila Real, 17 de Junho de 2018. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 21 de Junho de 2018. A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.direcaodevida.blogspot.com.]

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