Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

domingo, 10 de junho de 2018

ZONA DE PERECÍVEIS (140)



Psicologia do aconchego

A minha Mãe foi internada de urgência e sujeita a operação delicada. Retiraram-lhe parte substancial do intestino grosso, numa madrugada interminável de Maio. À porta do hospital, lá estavam o Z.T. (filho primogénito), o N. (filho mais novo), a F. (anjo-da-guarda da Mãe), e eu com a consubstancial MP. Uma tribo. Reconfirmámos mil vezes a dificuldade de lidar com a mortalidade em geral e com a das Mães em particular. 
No dia seguinte, a nossa paciente mal conseguia falar, estava confusa e sentia-se exausta. Ainda assim, apesar de não ter os dentes colocados, ofereceu-nos um sorriso feliz – e eu li-o como se fosse um daqueles poemas simples e profundos que há, por exemplo, em Sophia ou Jorge Sousa Braga: dizia conforto, alegria, gratidão por não a deixarem ali só.
Confesso-vos que me dou bem com a solidão. Gosto de momentos em que não estou para o mundo, ocupado apenas com o ser dono absoluto do meu tempo – para ler, escrever, meditar, fazer contas e planos, arrumar a secretária e a vida. Encaro esses instantes como uma recarga de oxigénio e deles necessito para enfrentar, depois, o resto da existência. Não é, atentai, uma solidão contra os outros; é apenas um caso de amor & interesse que discretamente mantenho com o universo. Mas assusta-me a outra solidão, a involuntária. A da pobreza de amor, i.e. a da falta desse aconchego vital de que, umas vezes mais do que outras, precisamos tanto. Por isso me orgulha o sentido tribal que há na minha família mais nuclear: em alturas de crise, em nome de uma Causa Maior, esquecem-se as tricas, os caprichos, os azedumes fátuos. E assim foi, uma vez mais, desta feita pela amadíssima matriarca. Dei por mim a pensar, à sua cabeceira, ouvindo gemer na cama ao lado certa idosa sem visitantes, que um dos maiores sofrimentos, na doença, pode ser o sofrer-se sozinho.
Há dias, numa aula, a L. confidenciou à turma que gostava muito das suas sessões com a psicóloga. A revelação surgiu a propósito da palavra “psicologia” (exemplo de palavra morfologicamente composta). Eu lembrei a importância que, para muitas pessoas de todo o mundo, têm os psicólogos. Em países altamente desenvolvidos, o seu apoio é fundamental para o cidadão comum e também para gente famosa das artes, dos média, das finanças, da política, etc. - e não por acaso, acrescentei, há psicólogos muitíssimo bem remunerados. 
A R. saiu-se com esta pergunta: “Mas que faz um psicólogo?”
A L. e eu próprio descrevemos, de forma sucinta, o trabalho destes profissionais. A R. voltou à carga: “Mas, afinal, eles apenas conversam com as pessoas?”
Admiti: “No essencial, sim.”
“Ora”, concluiu a R., “para isso tenho os meus amigos e escuso de pagar!”
Voltámos aos exercícios à roda da formação de palavras. Na minha cabeça ficou esta verdade denotativa e poética: ter amigos (como ter família) é também um seguro de saúde nada despiciendo. Um dia, pensei, escrevo uma crónica sobre esta ideia.

Coimbra, 01 de Junho de 2018.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 07-06-2018. A fotografia - já utilizada neste blogue - junta a minha Mãe e a minha Filha. Únicas ambas.]

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