Na primeira segunda-feira depois das férias, numa manhã de Setembro muito quente, o senhor Valter dos correios foi mandado, pela nova chefe do serviço, para o armazém das encomendas atrasadas. Acontecia que, por razões quase nunca atribuíveis ao serviço (moradas erradas ou incompletas, por exemplo), certas encomendas se perdiam algures no caminho e só graças à dedicação e paciência dos funcionários reencontravam a luz do destino certo.
A meio da manhã, houve um incidente digno de nota no dia repetido do senhor Valter: uma das encomendas que ele estava cuidadosamente reencaminhando tombou da prateleira. Tratava-se de uma caixa de cartão de fraca qualidade, remetida há meio ano já por remetente de Faro e destinada a uma “Sabina Graça” de Aveiro. Ao tombar, a dita caixa abriu-se e do seu ventre já não secreto saíram fotografias, um anel de prata e – aqui está o pormenor picante – um conjunto de lingerie de cor escandalosamente vermelha.
O funcionário, perturbado, olhou em redor, temendo algum risinho filho-da-puta dos colegas de turno. Mas estava sozinho. Pôde, com devinda tranquilidade, reunir sobre a mesa aqueles pedacinhos de alguma história que, no imediato, não entendia. E descobriu, caída no chão junto a duas fotos cheias de romantismo e sensualidade, uma curta carta.
Voltou a mirar os recantos próximos e mais distantes do armazém, despistando qualquer espionagem inconveniente. Convencido enfim da sua maravilhosa impunidade, suspendeu por minutos os deveres ético-deontológicos que o cometiam – e lá se pôs a ler a missiva.
Era de um homem chamado Álvaro. Explicava à pobre Sabina que o coração decidira terminar aquele namoro de três anos. Que havia outra, mas que essoutra não tinha culpa. E terminava dizendo que desejava à ex-namorada “toda a felicidade do mundo” (hipérbole conhecida e muito gasta à força de tanto uso, como sabemos).
As fotos, o anel e a lingerie eram – percebeu o senhor Valter – recordações do amor finito. O homem devolvia-os como se, com esse ritual, se resolvesse de vez a suspensão de um vínculo outrora julgado para sempre. Ao recolocar tudo na caixa, o funcionário dos correios tomou-se, durante alguns segundos, daquele encanto que muitas almas sentem ao mirar fotografias de felicidade passada, e que magicamente (e decerto mentirosamente) parecem presentificar o que não pode jamais reacender-se. Também se apercebeu de que na roupa íntima de Sabina permaneciam odores de corpo feminino: tratava-se, pois, de lingerie usada que, por algum fetiche suspeitoso, o homem guardara consigo. Há quanto tempo teria o tal Álvaro, guardada em alguma gaveta escondida, esta lembrança física e, pois claro, simbólica?
A verdade é que o anel e as fotos eram dignos representantes de um amor feliz, entretanto findo. E que as peças femininas cheiravam mal!
Suspirando, o senhor Valter disse de si para si que aquela encomenda oferecia duas leituras sobre a memória do amor – uma formosa e delicada, outra cínica e feia. Feia, sim, porque há em algumas histórias do coração a perecibilidade de que os frutos, os produtos lácteos e a carne em geral sofrem. Passa o prazo de validade e, depois, tresandam.
À noite, passeou com a esposa e falou-lhe daquele dia em que, na praia, tinham ficado a ver o sol tomar banho no mar. A mulher não se lembrava, coitada.
Ribeira de Pena, 11 de Junho de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.frasespt.blogspot.pt/.]
2 comentários:
Gostei! Inevitavelmente, a perecibilidade está associada a algumas histórias de amor, a outras estará ligada a ausência de paixão, de companheirismo, de carinho e ou de atenção, mas que mesmo assim perduram de alguma forma! É essencial manter a "chama acesa" para que as histórias de amor não tenham data de validade!!!
Absolutamente de acordo, cara amiga. Sou cultor dessa teoria e dessa prática. E a minha moderada, mas grata, felicidade recomenda ambas. Beijinho. JJC
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