O meu colega Manuel Vilares fez-me chegar, por Email, um extraordinário texto de Teolinda Gersão (não sei dizer a fonte), que genialmente põe a ridículo algumas alterações no ensino da Língua Portuguesa, sobretudo no que recentemente se aprovou, com a chancela do Ministério da Educação, para o ensino da gramática.
Sobre gramática, defendi sempre que se trata de uma dimensão necessária no ensino da Língua, no pressuposto de que tal contribui objectivamente para a melhoria de conhecimentos e competências dos nossos jovens. Gosto de olhar para a gramática como a mecânica do Português, e de explicar o nosso estudo, nessa área, como um exercício gratificante que serve, em última análise, para satisfazer a nossa curiosidade intelectual e académica e para esclarecer dúvidas acerca do Bem Falar e do Bem Escrever.
Contudo, muito do que actualmente se propõe no domínio do CEL (Conhecimento Explícito da Língua) tende a tornar - ainda - mais complicada a matéria, sendo em grande medida um território rebuscado, desinteressante - e que mais facilmente confunde do que esclarece quem generosamente quer aprender gramática. Diz o povo que "para piorar, já basta(va) assim..."
Cada vez mais me parece um desperdício - de tempo, recursos, paciência, atenção, energias - isto de passar boa parte dos blocos lectivos, em Língua Potuguesa, a falarmos de minudências da linguística (ainda por cima, "novidades" instáveis e cientificamente questionáveis) em vez de lermos bons textos, escrevermos mais, debatermos oralmente temas e conceitos estudados, etc.
Às vezes, é preciso alguém que realmente ame a Língua Portuguesa (e suficientemente consagrado para ser levado a sério) para pôr os pontos nos is. Do mesmo modo que celebrei a posição, por exemplo, de Vasco Graça Moura sobre o Acordo Ortográfico, congratulo-me agora com esta lufada de ar muito, muito fresco trazido por Teolinda Gersão. Deixo-vos com a lucidez (corrosiva e formosa) desta Escritora que faz o favor de nos pôr a pensar...
Teolinda Gersão
Escritora
Tempo de exames no secundário, os meus netos pedem-me ajuda para estudar português. Divertimo-nos imenso, confesso. E eu acabei por escrever a redacção que eles gostariam de escrever. As palavras são minhas, mas as ideias são todas deles.
Aqui ficam, e espero que vocês também se divirtam. E depois de rirmos espero que nós, adultos, façamos alguma coisa para libertar as crianças disto.
Redacção – Declaração de Amor à Língua PortuguesaVou chumbar a Língua Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar, mas a gente está tão farta que já nem se importa. As aulas de português são um massacre. A professora? Coitada, até é simpática, o que a mandam ensinar é que não se aguenta. Por exemplo, isto: No ano passado, quando se dizia “ele está em casa”, ”em casa” era o complemento circunstancial de lugar. Agora é o predicativo do sujeito. “O Quim está na retrete” : “na retrete” é o predicativo do sujeito, tal e qual como se disséssemos “ela é bonita”. Bonita é uma característica dela, mas “na retrete” é característica dele? Meu Deus, a setôra também acha que não, mas passou a predicativo do sujeito, e agora o Quim que se dane, com a retrete colada ao rabo.No ano passado havia complementos circunstanciais de tempo, modo, lugar etc., conforme se precisava. Mas agora desapareceram e só há o desgraçado de um “complemento oblíquo”. Julgávamos que era o simplex a funcionar: Pronto, é tudo “complemento oblíquo”, já está. Simples, não é? Mas qual, não há simplex nenhum,o que há é um complicómetro a complicar tudo de uma ponta a outra: há por exemplo verbos transitivos directos e indirectos, ou directos e indirectos ao mesmo tempo, há verbos de estado e verbos de evento,e os verbos de evento podem ser instantâneos ou prolongados, almoçar por exemplo é um verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários pratos e muitas sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos, psicológicos e outros, há o tema e o rema, e deve haver coerência e relevância do tema com o rema; há o determinante e o modificador, o determinante possessivo pode ocorrer no modificador apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções contínuas correlativas. Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser: Algumas árvores secaram, ”algumas” é um quantificativo existencial, e a progressão temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do enunciado seguinte e assim sucessivamente.No ano passado se disséssemos “O Zé não foi ao Porto”, era uma frase declarativa negativa. Agora a predicação apresenta um elemento de polaridade, e o enunciado é de polaridade negativa.No ano passado, se disséssemos “A rapariga entrou em casa. Abriu a janela”, o sujeito de “abriu a janela” era ela, subentendido. Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que continua a ser ela? Que aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no espaço?A professora também anda aflita. Pelo vistos no ano passado ensinou coisas erradas, mas não foi culpa dela se agora mudaram tudo, embora a autora da gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática do ano passado. Mas quem faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que quiser, quem chumba nos exames somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em tudo excepto em português, que odeio, vou ser cientista e astronauta, e tenho de gramar até ao 12º estas coisas que me recuso a aprender, porque as acho demasiado parvas. Por exemplo, o que acham de adjectivalização deverbal e deadjectival, pronomes com valor anafórico, catafórico ou deítico, classes e subclasses do modificador, signo linguístico, hiperonímia, hiponímia, holonímia, meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e interdiscurso, texto, cotexto, intertexto, hipotexto, metatatexto, prototexto, macroestruturas e microestruturas textuais, implicação e implicaturas conversacionais? Pois vou ter de decorar um dicionário inteirinho de palavrões assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes palavrões só são para esquecer. Dão um trabalhão e depois não servem para nada, é sempre a mesma tralha, para não dizer outra palavra (a começar por t, com 6 letras e a acabar em “ampa”, isso mesmo, claro.)Mas eu estou farto. Farto até de dar erros, porque me põem na frente frases cheias deles, excepto uma, para eu escolher a que está certa. Mesmo sem querer, às vezes memorizo com os olhos o que está errado, por exemplo: haviam duas flores no jardim. Ou : a gente vamos à rua. Puseram-me erros desses na frente tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser por isso que os ministros também os dizem na televisão. E também já não suporto respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes até se acerte ao calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e reportagens, ou pedaços de novelas. Estou careca de saber o que é o lead, parem de nos chatear. Nascemos curiosos e inteligentes, mas conseguem pôr-nos a detestar ler, detestar livros, detestar tudo. As redacções também são sempre sobre temas chatos, com um certo formato e um número certo de palavras. Só agora é que estou a escrever o que me apetece, porque já sei que de qualquer maneira vou ter zero.E pronto, que se lixe, acabei a redacção – agora parece que se escreve redação. O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil não tem culpa nenhuma, não nos quer impôr a sua norma nem tem sentimentos de superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e julgamos que se escrevermos ação e redação nos tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos puséssemos em cima de sapatos altos. Mas, como os sapatos não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E é bem feita, para não sermos burros.E agora é mesmo o fim. Vou deitar a gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar: Ó João, onde está a tua gramática? Respondo: Está nula e subentendida na retrete, setôra, enfiei-a no predicativo do sujeito.João Abelhudo, 8º ano, turma C(c de c…r…o, setôra, sem ofensa para si, que até é simpática)
Ribeira de Pena, 21 de Junho de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
2 comentários:
Quem se chama Teolinda Gersão e tem um neto com o apelido Abelhudo não pode gostar de coisas complicadas! ...
Agora, a sério, todas as gramáticas têm a sua lógica interna, os seus pontos fortes e as suas debilidades. A gramática tradicional, se quisermos chamar-lhe assim, também tinha tudo isso. Mas, realmente, é isto que queremos ensinar aos alunos na escolaridade obrigatória? Sobrecarregá-los com nomes impronunciáveis que designam significados incompreensíveis à luz de lógicas rebuscadas?
Professores de Português do 3º ciclo e Secundário: sois uns heróis (ou será herois?)!
Certíssimo. Abraço!
JJC
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