Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

segunda-feira, 4 de junho de 2012

O Poder


1
Um antigo professor, a propósito de certos déspotas, falava sempre de "poder com ph" ("phoder", portanto).
2
A questão do poder tem despertado em muitos pensadores (artistas, filósofos, cientistas disto & daquilo, gente em geral) reflexões diversas e nem sempre coincidentes. Ontem, num documentário sobre Bill Clinton, ouvi a este ex-presidente norte-americano uma frase interessante sobre o assunto, proferida no discurso de despedida da Casa Branca: "O poder é importante ou não segundo aquilo que se faz com ele."
Clinton saberia bem do que falava, tendo em conta o que de positivo fez pelo seu país e pelo mundo, e igualmente tendo em conta algumas atitudes menos próprias que mancharam (este verbo é bom) o seu mandato.
3
Sobre a questão do poder, lembro-me sempre de um episódio que vivi na tropa. Quando, em 1987, era um instruendo (o equivalente a "recruta"), eu encontrei, na unidade onde aprendia o ofício da guerra, um ex-aluno que já era "aspirante". Com evidente embaraço, falou comigo, deu-me ordens, assumindo o seu papel de graduado, mas mantendo sempre um cuidado (não reverencial, respeitoso) e uma educação exemplares. Também lá encontrei, já "aspirante", um conterrâneo, ex-colega de liceu e, depois, de faculdade, que aproveitou para - sobre mim e outros - exercer o vil exercício da humilhação gratuita, no sentido (sempre falho de eficácia) de ter piada. Certo dia, depois de uma tarde passada a praxar toda a gente com requintes sádicos e geralmente estúpidos, veio ter comigo, depois do jantar, e pediu-me alguns minutos para conversarmos. A custo, assenti. Ele trouxe-me para o meio da parada, pôs-me em posição de "à vontade" (corpo hirto, mãos atrás das costas à altura da cintura, rosto direito) e perguntou-me, sorrindo cinicamente, se eu estava aborrecido com a sua pessoa. Respondi-lhe mais ou menos assim:
- Estou desapontado, embora nunca tenha tido grandes ilusões acerca do teu mau carácter e da tua deficitária inteligência.  E, em tendo oportunidade, quando ambos formos novamente civis, parto-te o focinho.
Ele ficou possesso, obrigou-me a assumir a posição de sentido e, durante uns quinze minutos, perorou sobre as virtudes da camaradagem e da obediência. No final, fez questão de ouvir da minha parte o pedido de permissão para me retirar. Corrigi-lhe a sintaxe, num tom respeitoso, provocando-lhe novos espasmos de fúria. Não me agrediu, mas daí em diante, sempre que pôde, implicou comigo e, nos limites da sua própria autoridade e liberdade, humilhou-me com o requinte que a sua pobre imaginação paria.
Anos mais tarde, reencontrei-o em Coimbra, num centro comercial. Vinha acompanhado da mulher, uma senhora magrinha com ar triste. Chamou-me e quis falar comigo como velho camarada da tropa. Reacendeu-se em mim, logo, todo o desprezo e revolta que a figura de um canalha sempre me inspira. Disse-lhe, à frente da pobre esposa:
- Não fales comigo. Metes-me nojo. Se algum dia me voltares a cumprimentar, desfaço-te.
O suíno, cobarde maior de todos, tartamudeou, com escândalo e medo:
- Depois de tanto tempo, ainda estás aborrecido?
- Ainda. Para sempre. Metes-me nojo, pá!
Não fiquei orgulhoso com o episódio, mas tão-pouco me arrependo.
E nutro o mesmo sentimento por políticos, gestores, juízes, administrativos, pais, polícias, etc. que se aproveitam do poder (essa arma inevitavelmente provisória) para perseguirem, dominarem, humilharem os seus semelhantes. Não creio, sublinho, que fosse essa a exacta situação de Clinton (aquém e além-Lewinski). No presente do nosso país, lugar onde a corrupção floresce impunemente e os castigos normalmente prescrevem, creio que é tudo ainda pior.
4
O poder é o que fazemos dele, sim. É  um perigo nas mãos de canalhas. Por mim, perdoai, mas nunca me esqueço de uma canalhice. Nem de um canalha.

Arco de Baúlhe, 04 de Junho de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://krommus-briosa.blogspot.com./]


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