Antes de conhecermos uma pessoa, ela não está bem viva. Isto é, pode trabalhar, respirar, pagar impostos, mas para nós é como se não vivesse porque não tem lugar na nossa lembrança ou no nosso coração.
Quando conhecemos alguém, então sim, é como se esse alguém nascesse, isto é, como se houvesse um recenseamento íntimo de novo ser vivo em nossas vidas.
Mas a noção deste viver verdadeiro não acaba aqui. Dá-se com alguns dos nossos conhecidos que eles evoluem, de facto, da condição de sombras para a condição de amigos. E depois não são já apenas vivos acidentais no cartório da nossa atenção: passam a sangue consubstancial ao nosso sangue, a realidade consubstancial à nossa realidade.
Os nossos amigos vivem em nós, e a nossa própria vida depende, em grande medida, de eles estarem vivos.
É por isso que a morte de um amigo ou de uma amiga é sempre também a morte de nós próprios (a morte ou algo parecido, igualmente triste).
Já senti na carne, várias vezes, a verdade de quanto acima digo. Tenho coleccionado, com dispensável regularidade, súbitas e anunciadas partidas de gente querida e, a cada episódio, há um pouco de mim mesmo que desaparece.
Também a minha colega Clara Póvoa, antes de o ser, não existia verdadeiramente na minha vida. Mas, na década de noventa do século XX, fui colocado na Escola Secundária de Cantanhede e operou-se esse milagre necessário. A seguir, com a naturalidade de um amanhecer, ficámos amigos.
Fundámos este afecto grande em várias cumplicidades. Posso lembrar algumas: a profissão; a alegria de viver construindo coisas, perseguindo sonhos; o sentido de humor; o sentido crítico (que é a liberdade em acção); o comum amor pela literatura.
A questão dos livros tem, na minha história com a Clara, uma particular importância. Por razões familiares, eu despedi-me de Cantanhede e fui leccionar para uma vila pequenina de Trás-os-Montes. Esta mudança não significou o meu desaparecimento para a Clara, que – com outros colegas – me foi convidando para vir à sua, nossa escola palestrar sobre poesia, narrativa, teatro, às vezes até para apresentar um dos meus livrinhos. Deu-se ainda a coincidência de a Clara se ter tornado professora bibliotecária e de, muito por sua iniciativa, a biblioteca da Escola Secundária de Cantanhede haver organizado numerosas actividades no domínio da promoção da leitura. Continuei a vir aqui, a seu convite, partilhar livros e mundos e versos e opiniões junto de alunos e professores.
A Clara tinha um especial carinho pelo Boletim da Biblioteca e, uma vez por outra, fui convidado a nele escrevinhar o que me apetecesse. Quando o nosso colega Abílio faleceu, ela achou que seria eu o natural sucessor de um espaço bem nobre da publicação – certa coluna de primeira página (eventualmente com continuação nas páginas interiores), espécie de editorial feito, digamos assim, com o coração. Como habitualmente, disse-lhe que contasse comigo.
Ao telefone ou via Email, comunicávamos de tempos a tempos. Eu soube, com poucos pormenores, da sua doença, do atraso na saída de um Boletim, de formosas actividades da biblioteca, do seu mestrado. Numa das últimas vezes que conversámos de viva voz, talvez há meio ano, agendámos o lançamento, em Cantanhede, de um livro meu intitulado Um Barco Chamado Sophia Loren. Caber-me-ia uma palestra sobre o poder da leitura e, em concomitância, falar desta minha novela.
Quero dizer-vos algo sobre este livro porque, para minha mágoa, algo há nele que, agora, me remete para a figura competente, amiga dos livros, lúcida, inteligente, bonita e tão digna que era (é) a Clara Póvoa. A obra em causa fala de um rapaz que, por razões várias, faz uma viagem de barco entre Lisboa e os Açores, na companhia de um velho professor. O rapaz aprende com o mestre, através de muitos relatos (orais ou em forma de livro), o valor da literatura – sobretudo, a que carrega histórias com sonhos e humanidade dentro. É à boleia de livros e conversas que o rapaz sabe do grande amor da vida deste homem, e de como, apesar da morte (por doença) dessa senhora amada, nunca do coração do homem se ter apagado o amor.
O final do livro é o texto que o velho professor deixa na lápide tumular da esposa: “Em memória de Matilde Nunes Horto. Saudades do marido, Horácio Horto, e de Filipe Félix, que a conheceu e amou só de ouvir contar.”
Consola-me a ideia de (como na escrita, como nos livros) haver esta possibilidade de, pela lembrança e pela revisitação delicada de biografias exemplares, se manter a amada gente viva, apesar de não. Espero que me compreendam.
Escrevi este texto a pensar na Clara e quero partilhá-lo com todos quantos a conheceram e a estimaram. Mas destino-o igualmente a quem, não a tendo conhecido, não soube sequer da sua existência luminosa, perdendo-a de suas vidas. Para uns e outros, o desafio é, inesquecendo-a, manter viva esta nossa Amiga. Sempre. Como se faz com os livros.
Coimbra, 30 de Janeiro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[O texto que aqui deixo, dedicado à inesquecível colega e amiga, Clara Póvoa, foi escrito para o Boletim da Biblioteca da Escola Secundária de Cantanhede (entretanto publicado). A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.be.escantanhede.pt.]
2 comentários:
Foi com grande tristeza que tomei conhecimento do desaparecimento de Clara Póvoa. Recordo claramente a vivacidade e paixão desta pelo universo das letras e da literatura. Apenas posso dizer que esta manter-se-á sempre presente nas minhas memórias, particularmente as que dizem respeito à minha passagem pela Escola Secundária de Cantanhede!Apenas...um até sempre!!!!
Muito certo. Beijinho, Patrícia.
Enviar um comentário