Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

segunda-feira, 16 de maio de 2011

A vida é feita de nada(s)


Um poema de Torga abre com esta provocação: “A vida é feita de nadas.”
Questiono os alunos do 9.º ano sobre o sentido da afirmação. Hesitantes, vão dizendo: “que a vida vale pouco; que a vida é insignificante; que a vida é nada.”
Obrigo-os a reler o poema na totalidade. Pergunto se o poema lhes parece pessimista, derrotista. Acham que não – e, quase em coro, sublinham a admiração do sujeito poético pelo trabalho de seu pai tratando de videiras "como uma mãe que faz tranças à filha".
Requestiono-os: então, se o poema se funda numa visão optimista, bela, luminosa, que quererá o texto significar com o verso “A vida é feita de nadas”?
Levamos – todos - uns dez minutos a perceber que, ali, “nadas” significa “pormenores (aparentemente) sem importância".
Dá-se, então, a epifania que justifica esta evocação. Subitamente, eu próprio percebo que a minha existência se mede pela lenta e serena passagem, por mim, de episódios, imagens, vozes, objectos, pessoas, minutos, dias, anos, livros, caminhos. Eu-sendo, digamos, nessa discretíssima sucessão de todos os pormenores contemporâneos de meus sentidos.
Se um médico dissesse que nos faltava viver apenas um mês, como perspectivaríamos nós a perda iminente de tudo? Ouso dizê-lo agora, à boleia (grata) de Torga: seria a impossibilidade de acordar outra vez, de tomar banho, de beber um café, de sentir na orelhas o frio revivo da manhã ou o beijo insinuante do irmão sol, de ver gente passando, de ouvir notícias e música no rádio viajante, de nos doer a escultura de certa senhora desconhecida num vestido perigoso, de rir das piadas súbitas que há nos dias, de ouvir as pessoas que amamos dizerem que estão bem (e que nos amam). Enfim, a impossibilidade de, como tão bem escreveu outro poeta português (Eugénio de Andrade), um homem “permanecer”.
Ora, na tal lista de perdas que a correr supra-enuncio, nada há de exuberantemente extraordinário ou conspícuo. São, digamos, apenas “nadas”. Mas nadas que são a vida.
E, agora, atentai: eu, que estou farto (mas não cansado) de ler este Torga, nunca percebera tão bem este verso como no dia 13 de Maio, durante uma conversa com queridos alunos do meu 9.º C! Como não respeitar um poder tão grande? Como não admirar e amar a literatura que, quando merecemos percebê-la, nos diz tão bem?

Ribeira de Pena, 14 de Maio de 2011.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.agricultura-familiar-tradicional.blogspot.com.]

2 comentários:

Manuela Caeiro disse...

Vim à procura deste poema: um dos que pertencem à minha "Antologia Pessoal". Gostei muito desta sua abordagem, Professor! (Tenho de espreitar as outras postagens e novas boas surpresas, seguramente...)

Anónimo disse...

Querida Amiga, bem-vinda a este Mar! Espero encontrá-la mais vezes aqui, para mais cumplicidades a haver. JJC