Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Never more


O meu pai apareceu-me, uma vez mais, num sonho. De manhã, além do frio, senti nos ossos a sua falta. Como o corvo de Edar Allan Pöe, cada pedaço do meu mundo grasna a ausência das suas mãos, da sua voz, do seu cheiro, do seu discurso, da sua graça: Never more. Nunca mais.
Houve muitas vezes em que, de menino a homem, estive com meu pai.
Mas houve sobretudo, também, tantas vezes em que não estivemos juntos. Tantas.
Agora?
Never more, merda.
Nunca mais.

Arco de Baúlhe, 30-11-2010.
[Para o Daniel, cujo pai habita o mesmo Planeta Dor.]
Joaquim Jorge Carvalho

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Xadrez da Inteligência


A Escola Básica do Arco de Baúlhe vai ter xadrez na Biblioteca.
Lembro: já houvera, antes, na Escola, um Clube dedicado a esta ginástica intelectual; agora, será uma das actividades disponibilizadas na Biblioteca.
Promovida pela bibliotecária, a colega Rosário Mendes, aos professores colaboradores da Biblioteca foi oferecida uma sessão de esclarecimento sobre o xadrez. Compreenda-se o objectivo: se os docentes estão ao serviço, em certas ocasiões, da nossa Biblioteca, natural será que dominem, entre outras competências, alguns segredos da arte xadrezística.
O professor Paulo Pinto - generoso visitante deste meu blogue - conduziu, com clareza e brilho previsíveis, a sessão. Eu, que já sabia um bocadinho do assunto, aprendi muito!
No devir da sessão, dou por mim a reflectir: não se ganharia também em que, como noutros países, se tornasse obrigatória a prática do xadrez, pelos nossos alunos, nas escolas do 1.º ciclo (e nas seguintes)?
Estou a pensar em benefícios óbvios, amigos: hábitos de concentração, desenvolvimento do raciocínio, reforço do sentido de perseverança, etc.
Pertinente, n'est-ce pas?

Ribeira de Pena, 25 de Novembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

Alegre


O problema de Manuel Alegre é sobretudo ter apoios partidários declarados. O Bloco de Esquerda acantona-o numa lógica de "enfant terrible" libertário mas não presidenciável. O PS de Sócrates tinge-o de neoliberalismo envergonhado e pessoalmente indecente.
Eu creio que foi sobretudo Sócrates que, apoiando publicamente Alegre, o condenou à probabilíssima derrota nas presidenciais.
De modo que Cavaco, quase de certeza, (re)triunfará.
Mas num país onde morreram o livre pensamento e a revolta, convenhamos, que escolha mais indicada para o poder maior do que uma respeitável múmia política?

PS: Tenho ouvido e lido referências venenosas a um putativo passado de desertor que impenderia, como mácula eleitoralmente conveniente, sobre Alegre. É tão ridículo, injusto e estúpido falar nesses termos como, por exemplo, chamar anti-patriotas aos alemães que voluntariamente se recusaram a colaborar com Hitler na 2.ª Grande Guerra.

Ribeira de Pena, 25 de Novembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Calendário Mental


I
Papéis, papéis, papéis, papéis, papéis.
Aulas.
Reuniões, reuniões, reuniões, reuniões, reuniões.
Casa.
Papéis, papéis, papéis, papéis, papéis.
Aulas.
Reuniões, reuniões, reuniões, reuniões, reuniões.
Casa.
Papéis, papéis, papéis, papéis, papéis.
Tudo tanta coisa. Tudo tão rotina & burocracia. Tudo tão quase nada.
Do que eu gostava mesmo, Mãezinha, era de ser professor.

II
Einstein sobre o infinito (cito de cor):
«Só há duas coisas verdadeiramente infinitas: o Universo e a Estupidez Humana. E sobre o Universo não tenho a certeza.»

III
Se toda a mediocridade fosse, antes, uma praia matutina, com o cheiro à maresia da Novidade verdadeira!

Ribeira de Pena, 10 de Novembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.topazio1950.blog.sapo.pt.]

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Sonho por Bernardo Soares


Eu tinha um sonho que ninguém via:
Era meu só; dizê-lo era perdê-lo
Porque a única razão, sabei!, de tê-lo
Era mais ninguém saber do que eu sabia.

Não se diz eu sei um sonho como quem
Diz eu sei um ninho que é só meu
(Mas era assim tesouro a que ninguém
Dava o valor do ouro que era o seu).

Agora, por ser velho, já perdi
O medo de o dizer, o revelar –
Trouxe o Tempo a luz e percebi
Que um sonho é um ninho por contar

E que morria o sonho desse medo
De eu dizer ao mundo o meu sonhar.
Ora, é pior a perda do segredo
Que o sonho ter morrido sem voar.

O sonho é mais, direi, que meu.
Por isso o solto, o grito, ai, no ar
Que este sonho-ninho só nasceu
Para eu próprio voar.

Ribeira de Pena, 09 de Novembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em www.http://louletania.com.]

Wild Life


Sempre gostei de documentários televisivos sobre a vida selvagem. Graças sobretudo à BBC, sei hoje muito mais do que, em teoria, deveria saber sobre os hábitos reprodutivos dos pinguins, as diferentes formas de veneno que há nas serpentes, ou as dificuldades de sobrevivência do urso polar.
Aprendemos, com esses vívidos relatos, que na selva vinga a lei do mais forte. Não raramente, esqueço-me de accionar o botão da piedade e dou por mim entusiasmado com a agilidade e eficácia da caçada dos leões, justamente premiados com a carne fresca de gazelas jovens. Nunca há ali questões de moral ou ética. É assim porque tem de ser assim.
Já todos vimos como os animais, em sua bestialidade sobrevivente, exploram sempre que podem a fraqueza dos outros. Um ser ferido, ali, tem normalmente a sua (má) sorte traçada – e é ele, entre todas as vítimas possíveis, a mais provável morte a haver. É assim. É a selva.
No mundo dos homens, não é assim.
Não?
Sabe-se que “os Mercados”, assim que lhes cheirou a sangue (i.e., a falência económico-financeira), apertaram com a Grécia e a Irlanda e, agora, apertam com Portugal.
Num mundo diferente da selva, os países em maiores dificuldades teriam maior tolerância dos mais fortes (em matéria de juros, por exemplo, no presente contexto).
Num mundo onde vigore a lei da selva, quanto maiores forem as dificuldades dos países, mais exigente e cruel é o tratamento dos banqueiros nacionais e internacionais.
Sucede que os países são constituídos, antes de mais, por pessoas. São elas que sofrem. Os pançudos nacionais e internacionais não querem saber disso porque não. Porque é assim. Porque é a selva.
Gil Vicente falou, com propriedade, dos onzeneiros infernais. Zeca Afonso falava dos vampiros que não deixam nada.
Senhores, escutai: o capitalismo (este capitalismo) não deveria ser o fim da História.

Ribeira de Pena, 08 de Novembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em www.fotosearch.com.]

domingo, 7 de novembro de 2010

Liberalismo(s)


Pessoa amiga deu-me a ler um livrinho precioso intitulado Alguém Diz Tu - Quatro Conversas com Óscar Lopes (Porto, Ed. Campo das Letras, 2000). Trata-se de um conjunto de entrevistas ao insigne intelectual (co-autor da monumental História da Literatura Portuguesa, da Porto Editora) conduzidas por Manuela Espírito Santo, José Viale Moutinho e Francisco Duarte Mangas.
O livrinho tem apenas 81 páginas (incluindo-se já, neste limite, um prefácio do galego Méndez Ferrín). Mas soube-me muito bem. É uma espécie de oxigénio isto de privarmos com um grande nome dos estudos literários, beneficiando tão intimamente da sua inteligência e lucidez.
Para além de revisitarmos, pelo seu discurso, grandes nomes da escrita, curiosas memórias, peripécias singulares e temas reactuais como o (des)Acordo Ortográfico, há ainda a possibilidade de gratamente nos reencontrarmos, à esquina de um parágrafo, com o livre pensamento livre.
É o caso da opinião que Óscar Lopes corajosamente avança, muito ao arrepio da moda dos opinion makers do nosso medíocre presente, sobre o chamado "liberalismo" ou "neoliberalismo" (pp. 17-18):
«De um modo geral, eu mantive sempre o culto das liberdades individuais, portanto é sobretudo o liberalismo económico que me choca. Há um autor português que exerceu muita influência em mim, na minha geração. Trata-se António Sérgio, que fazia essa distinção muito clara entre o liberalismo económico, que é a concorrência, a caça ao lucro, e o liberalismo político, que é a defesa das liberdades essenciais. Estas duas coisas acho que são coisas diferentes. É muito importante a consolidação e até o desenvolvimento do liberalismo político, mas não acredito no liberalismo económico - por isso sou socialista.»
Assim não pensam, de certeza, os Sócrates, Passos Coelhos e quejandos espíritos da nossa praça - tão veneradores que são dos míticos "Mercados".
Também eu vou, aqui, pelo António Sérgio, embora não me atreva a achar-me, como Óscar Lopes, socialista. Lamento, mas dou-me irremediavelmente mal com rótulos.

Ribeira de Pena, 07 de Novembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

Sono, Sonho


A perturbação do sono tem a ver com a idade, diz-se.
Não me custa percebê-lo, não me custa aceitá-lo.
Mas a perturbação do sonho? Tem a ver com quê? Diz-se: com a morte da ingenuidade; com a morte da esperança.
Não me custa percebê-lo. Custa-me aceitá-lo.

Vila Real, 06 de Novembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto JJC/2010]

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O segredo da escrita


Estrangeiro do presente, sigo pela estrada
No avesso da infância, cansado de viver.
No devir de tudo, conheci o nada
Sigo, estrangeiro, a estrada de morrer.

Aprendi bem a arte de desistir
À força de perder sonhos seguidos.
Creio pouco agora no porvir
Por vir de tantos sonhos falecidos.

Esperar já foi emprego dos mais nobres
Mas hoje é uma noite que se adensa -
Afiz-me, assim, à puta indiferença
Que é a aspirina dos mais pobres.

Sou um rei mago cego, desistente
Da estrela-luz, do deus menino.
Devim só este fim inconsequente:
Escrevo, ai, por não haver destino.

Ribeira de Pena, 5 de Novembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem é uma criação de Van Gogh ("Sorrow", 1882).]

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Incontinências


Sabemos o desconforto que há num desarranjo intestinal: a vida parece abandonar-nos, dolorosamente, sobretudo na forma líquida. Estamos sempre quase a desmaiar, que é (deve ser) parecido com estarmos quase a morrer.
Há muito tempo que não sou sujeito a incómodos desses. Mas há outras formas de tortura que lembram as agruras viscerais da digestão desregulada. Falai, por exemplo, com Directores de Turma do século XXI português e sabereis do que falo. Nunca como agora se assistiu a tal incontinência burocrática. Vão-se salvando da loucura alguns mais resistentes e outros que, lá no íntimo, talvez até apreciem esta fúria legisladora e regulamentar por nunca terem gostado desse pormenor, cada vez mais secundário, de dar aulas.
O professor burocrata vive de grelhas, de estatísticas, de "listagens", de estratégias, de competências essenciais & transversais, de níveis de desempenho, de metas, de critérios e percentagens, de projectos disto & daquilo. Interrogo-me: que tempo lhes resta para a leitura de um artigo de jornal ou de um livro? Que tempo lhes sobra para se tornarem pessoas mais interessantes? Que tempo lhes fica para se cultivarem e oferecerem aos seus alunos a novidade?
É proibido falar de cansaço. "Quem se cansar dá a classificação a outro" (poderia dizer o senhor Miguel Sousa Tavares, conhecido Catão e espécie de escritor de grande sucesso). O sistema, hoje, tende a castigar os renitentes, os tais saudosos do tempo em que a principal ocupação era trabalhar com os alunos.

Senhor, quando se arranjará remédio para este desarranjo?

Ribeira de Pena, 04 de Novembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

Eles sabem o que fazem


O Daniel Abrunheiro é o melhor escritor português vivo. Já o disse. Repito-o enquanto não morrermos (eu ou ele).
É sobretudo um Poeta. Mas escreve (irremediavelmente bem) noutros territórios. Isto inclui a crónica.
Soube agora que o Daniel foi censurado por um jornal ribatejano por - alegadamente - se atrever a opinar sem apresentar "factos".
O único facto que se percebe nesta história fedorenta é que o país anda a morrer à míngua de higiene e de vergonha. O país todo. Na televisão, o espectáculo resume-se ao parlamento; mas a falta de cerviz não é exclusiva dos anões mediáticos: anda pela província, passeia-se por repartições modestas, esgueira-se por redacções da terrinha, diz adeus ao fiscal autárquico e olá ao senhor industrial das obras públicas.
Pouca gente ainda conhece o Daniel, o que é uma desgraça nacional. Mas lanço um desafio a quem me ler por aqui: imaginai que o Manuel António Pina via barrado um texto no canto superior do JN. Pois o que sucedeu é isso - com esta a diferença: o Daniel tem menos dinheiro e conhecidos que o (também) grande escritor-cronista do dito diário.

Ribeira de Pena, 04 de Novembro de2010.
Joaquim Jorge Carvalho
[Nota: é muito importante continuar a visitar o blogue do Daniel. Ao fundo desta página, ofereço-vos o precioso link. Seguir http://www.canildodaniel.blogspot.com.]

A vulgaridade interrompida


Em Pamplona, Espanha, comemorou-se o Dia Europeu da Ópera com um maravilhoso concerto não anunciado, a cargo de grandes vozes interpretando sucessos musicais, no improbabilíssimo contexto de um bar espanhol (muito semelhante ao Café Santa Cruz da natal Coimbrinha).
Naquele pic-nic de burguesas e burgueses, portanto, houve uma coisa simplesmente bela: a Música irrompeu pela tarde e iluminou bebedores anónimos de vinho ou café, comedores monótonos de tostas mistas, fumadores fugazes de tabaco barato, gente cumprindo a tarde funcionária de uma Primavera qualquer. Visto isso daqui, eu estava lá.
A Beleza interrompeu a rasteira existência de circunstantes habituados a nada.
Isto é, a Beleza interrompeu o Nada. Isto é, Tudo substituiu, por minutos, o Nada.
No final, sobre os aplausos comovidos (decerto gratos) dos beneficiários, alguns dos cantores levantaram cartazes celebrando a Ópera. Um deles dizia singelamente: "Vês como gostas?"
Eu tenho no meu coração, também, um cartaz assim, sempre pronto para mostrar aos meus alunos, aos meus amigos, à minha Mãe. Às vezes, no exacto instante do fulgor de um poema, de uma história, de uma música, de um filme, de uma visão cheia de céu, saco do meu cartaz em forma de palavras ditas, ou então de sorrisos, ou então de silêncios, e digo-lhes: É ou não é bonito?
Atentai, distraídos: a vida só vale a pena porque de vez em quando é visitada pela Beleza. Acontece aliás que, em tais momentos, Ela - a vida - se torna maior. E que, em vez de apenas estarmos, somos.

Ribeira de Pena, 3 de Novembro de 2010 (após ler E-mail precioso do Daniel remetendo para o Youtube).
Joaquim Jorge Carvalho