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Número de Ondas

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Incontinências


Sabemos o desconforto que há num desarranjo intestinal: a vida parece abandonar-nos, dolorosamente, sobretudo na forma líquida. Estamos sempre quase a desmaiar, que é (deve ser) parecido com estarmos quase a morrer.
Há muito tempo que não sou sujeito a incómodos desses. Mas há outras formas de tortura que lembram as agruras viscerais da digestão desregulada. Falai, por exemplo, com Directores de Turma do século XXI português e sabereis do que falo. Nunca como agora se assistiu a tal incontinência burocrática. Vão-se salvando da loucura alguns mais resistentes e outros que, lá no íntimo, talvez até apreciem esta fúria legisladora e regulamentar por nunca terem gostado desse pormenor, cada vez mais secundário, de dar aulas.
O professor burocrata vive de grelhas, de estatísticas, de "listagens", de estratégias, de competências essenciais & transversais, de níveis de desempenho, de metas, de critérios e percentagens, de projectos disto & daquilo. Interrogo-me: que tempo lhes resta para a leitura de um artigo de jornal ou de um livro? Que tempo lhes sobra para se tornarem pessoas mais interessantes? Que tempo lhes fica para se cultivarem e oferecerem aos seus alunos a novidade?
É proibido falar de cansaço. "Quem se cansar dá a classificação a outro" (poderia dizer o senhor Miguel Sousa Tavares, conhecido Catão e espécie de escritor de grande sucesso). O sistema, hoje, tende a castigar os renitentes, os tais saudosos do tempo em que a principal ocupação era trabalhar com os alunos.

Senhor, quando se arranjará remédio para este desarranjo?

Ribeira de Pena, 04 de Novembro de 2010.
Joaquim Jorge Carvalho

4 comentários:

Anónimo disse...

Sábias palavras.

Anabela

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Beijinho, Anabela.

Paulo Pinto disse...

Diálogo (aproximado) num recente Conselho de Turma:
Secretário da reunião - Então, escrevo que o comportamento da turma não satisfaz?
Professor A - Não ponhas isso. Se amanhã há uma inspecção, somos chamados à pedra...
Professor B - Mas porquê? É a verdade! Estivemos aqui a discutir estratégias... Eles são irrequietos e turbulentos em todas as disciplinas.
Professor C - O colega A tem razão. É sempre culpa nossa. É melhor defendermo-nos e pôr aí qualquer coisa assim: «razoável» ou «pouco satisfatório».

Adoptar um discurso à antiga, doutoral e sobranceiro, é anacrónico e nada tem a ver com o que um professor hoje precisa de ser. Não é questão de enxovalhar os alunos, que são seres em formação e quantas vezes mal orientados, e muito menos de desistir deles ou não fazer tudo para encontrar os caminhos capazes de os conquistar e bem formar.
O problema é quando nos auto-condicionamos e embarcamos numa metalinguagem tortuosa, de fazer de conta. Assim fazemos o jogo desse taylorismo educativo de 3ª categoria que nos quer reduzir a máquinas acéfalas.
(Devias fazer aqui como no Facebook: máximo 140 caracteres. Mea culpa!)

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Paulo, os teus comentários iluminam este espaço. Discorre livremente, pois, sem limite de palavras. É muito bem-vinda a tua inteligência e a tua lucidez. Abraço.
JJC