Bússola do Muito Mar

Endereço para achamento

jjorgecarvalho@hotmail.com

Número de Ondas

domingo, 30 de dezembro de 2012

Uma Morte Súbita: J. K. Rowling sabe contar, iô!


A MP e a VL ofereceram-me Uma Morte Acidental (título original: The Casual Vacancy), de J. K. Rowling, Lisboa, Editorial Presença, 2012. Os jornais tinham anunciado a primeira obra “para adultos” desta autora, o que já era motivo razoável de curiosidade; mas a mim interessava-me sobretudo perceber – mais do que isso: confirmar – que o talento de bem engendrar e de bem contar histórias não se esgota num público-alvo específico (etário ou outro). Sim, eu lera alguns livros da saga Harry Potter e encantara-me já com a evidente capacidade de invenção de plots e com a brilhante destreza narrativa de Rowling. Tratava-se agora, segundo anunciavam os jornais, de uma obra de cariz realista, com personagens e contextos da actualidade. Adivinhei que vinha aí coisa válida e, para o Natal, sugeri à MP e à VL este presente.
É um volume com 497 páginas, aviso. Mas desde o primeiro capítulo que a teia mágica da intriga nos agarra. Aprendemos os nomes e os tiques de umas vinte personagens, familiarizamo-nos rapidamente com uns dez (ou mais) cenários de acção, partilhamos ou abominamos algumas idiossincrasias particulares de uma cidadezinha inglesa (que me pareceu, por vezes, uma aldeia de Júlio Dinis) e, enfim, tornamo-nos moderados habitantes de Padford.
À roda da morte súbita de um notável da cidade (odiado & amado por outros notáveis), constrói-se um novelo riquíssimo de histórias - que passam por ridículas ambições políticas (à Eça), pela fome de brilho mundano (à Garrett), por certa degradação neo-realista da sociedade moderna (à Soeiro Pereira Gomes), pela violência doméstica (à Lídia Jorge), pelo mistério de laços familiares (à Camilo), pelo amor (à Yourcenar) e pela tocante fragilidade de que somos todos feitos (à Vergílio Ferreira).
O estilo de Rowling é simples e competente (à Júlio Dinis, à David Lodge), preterindo eventuais grandes arroubos de linguagem em favor da clareza da história, das histórias.
Para mim, que ando à procura de escrever o (meu) romance sonhado, a obra de Rowling recordou-me algumas noções fundamentais sobre este território genológico – nomeadamente, a importância de tornar familiares os espaços literários da intriga (“familiares” não significa conhecidos, note-se; significa “reconhecíveis” no universo da obra), a importância de distribuir generosamente a atenção do narrador por várias personagens, complexificando-as (de modo a aproximar cada ser ficcional da condição complexa e rica de seres humanos), a importância do saudável convívio e  concomitância entre acção principal e acção secundária (ou “acção” e “intriga”, como diria Carlos Reis; ou “intriga nuclear” e “intriga periférica”, como escrevi eu próprio, na minha tese sobre Júlio Dinis).
De menos positivo, para além da obediência ao novo acordo ortográfico, talvez o facto de a narração compreender demasiados casos dramáticos (e até trágicos), o que – num contexto geral representativo de certa rotina existencial – é susceptível de banalizar (e, ergo, de comprometer, desvalorizando) o acontecimento extraordinário.
Li Uma Morte Súbita entre as duas horas do dia 25 e as sete horas de hoje, dia 29. Quando acabei a leitura, já a luz decembrina da minha rua iluminava o quarto. E a própria luz romanesca era, como agora percebo, tão fresca como aquela manhã.

PS: A tradução desta obra foi certamente difícil. Gostei do modo como se representou-enunciou, em Português, a variedade de registos linguísticos, os regionalismos e o calão. Também a escolha de Uma Morte Súbita para título é um verdadeiro achado. Contudo, talvez pressionada por alguma urgência editorial, a equipa de tradutores (Alberto Gomes, Manuel Alberto Vieira, Marta Fernandes e Helena Sobral) fez, aqui e ali, várias opções manifestamente desaconselháveis (sublinhei cerca de quinze casos de tradução menos feliz). Mas são, repito, 497 páginas – e nisto de avaliação de traduções é tudo tão subjectivo…

Coimbra, 29 de Dezembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Coração contra o frio (2 apontamentos)



1. Algures entre o entardecer e a noite, uma voz interroga-me: "Existes para quê?" A minha resposta é um murmúrio silente: "Para proteger aqueles que amo." A voz ri-se do que digo e insiste: "Para os protegeres de quê?" Quase nem preciso de pensar: "Do frio." Talvez por nesta altura haver em Coimbra uma temperatura amena,  a voz transforma-se numa gargalhada cínica: "Do frio? De que frio, ó triste?" Respondo como quem faz um resumo da sua biografia essencial: "Existo para proteger aqueles que amo do frio do mundo."

2. A minha mãe foi abordada na igreja, ainda antes do início da missa, por um velhinho frágil, muito magro, quase transparente (mais velho, notai, que ela própria). O senhor trazia consigo umas dezenas de papéis. E ele mesmo explicou que se tratava de orações, por si copiadas à mão, numa elegante caligrafia como já não se usa. Levava os dias a passá-las para quartos de folhas A4 e, depois, distribuía-as por transeuntes. Deliberadamente fugia a fotocopiar as orações por tal não ser "a mesma coisa". A oração tinha de - explicou - passar primeiro pelo seu coração. Como se, digo eu, a sua mão direita caligrafasse as preces.

Coimbra, 26 de Dezembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Discurso talvez do meu Pai para mim em altura de ocaso

Sobre o delicado chão do presente, caminho.
Vislumbro, algures no que há-de ser, uma porta em forma de meia lua.
Escuta, filho: é ali o fim dos meus passos, mas não do caminho; é ali o fim do presente, mas não do tempo; é agora a minha última noite, mas não a nossa.

Arco de Baúlhe, 19 de Dezembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.cpantiguidade.wordpress.com.]

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Semiótica d'amor

A literatura só fala
Com quem bem a entender
E é preciso amá-la
Para a perceber.

Ribeira de Pena, 17 de Dezembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (de Thomas Mann) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.escenastur.com.]

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Relógio à chuva

Dói-me o fascismo das horas passando
O falecimento sazonal das flores -
Breve a vida ardendo em lume brando
Pulcra a finitude dos amores.

Cabeceiras de Basto, 13 de Dezembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.caosfilosofico.blogspot.pt.]

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Coisas com pessoas


A Professora Lepecky ensinou-me que, na narrativa, o espaço é um lugar semantizado, isto é, um lugar devindo coisa com significado devido, atentai, à presença de humanidade.
Assim na nossa vida, digo eu, mas não apenas com sítios, também com objectos, datas, ideias. Sei disto quando me ponho a pensar na ideia de esperança e, por dentro da palavra, surge a minha mãe, o meu (falecido) pai, o meu (falecido) sogro, o meu (falecido) cunhado. Ou quando me ponho a pensar em Natal e dou de caras com o meu avô em estado de saudade, já não deste mundo  (o meu avô que, digo-vos, era o meu Natal mais verdadeiro). Etc.
Hoje, por exemplo, dei também por mim a olhar, manhã cedo, para raios de sol rompendo entre nuvens, gaiteiros como espíritos renitentes ao inverno - e lembrei-me logo do Mestre João que dizia, sobre a sua Igreja, que não tinha tecto.

Arco de Baúlhe,  11 de Dezembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Convite simples para ler Poesia



A poesia é feita de corações em forma de linguagem
Ou da luminosa inteligência soando como grito.
Às vezes, é a música dos passos em viagem
Ou o regaço sereno do mar infinito.

O poema és tu, sou eu, a humanidade:
As dores ou os sonhos que há em nós
A palavra certa, a grata verdade
A música dos versos, nossa voz.

O poeta revela-se revelando-nos também -
O poema é o verso e o reverso de si.
Lemos mais do que o poeta, se o lermos bem:
Olha ali a sua vida, olha nós ali.

Arco de Baúlhe, 07 de Dezembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[Contributo para a promoção da leitura, feito no âmbito do meu trabalho
na Biblioteca da Escola Básica de Arco de Baúlhe)

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Ave, Vita - Morituri te Saluntant

Desde sempre, vejo as estações de comboios e os aeroportos como lugares muito belos e – sem contradição nenhuma –  terrivelmente tristes. É nestes territórios de humanidade avulsa que sinto aquela absurda vontade de sofrer dita em verso, por Cesário Verde, a propósito do entardecer lisboeta.
Em visita (benigna) ao I.P.O., acompanhando familiar, voltei a sentir, hoje, algo semelhante. No regresso a Ribeira de Pena, reflicto sobre a coincidência sensacionista: em que medida aqueles corredores são uma espécie de estação ferroviária ou de aerogare?
Surpresa nenhuma. Creio que tudo, como sempre, tem que ver com a mortalidade. Frágeis, leves, voláteis, transitórios, indefesos – ali vejo seres, como eu, partindo ou vendo partir. Encontrando-se, desencontrando-se, despedindo-se.
Voltarei ao I.P.O. daqui a um ano, segundo a agenda das consultas. Talvez aí nos reencontremos, queridos contemporâneos. Ou não. Repito: talvez.
Talvez é um delicado monumento linguístico à esperança, mas admite já a ominosa possibilidade da decepção. Uma ponte de cristal entre acreditar e resignarmo-nos. Entre sermos e termos de, um dia, deixar de ser.
A rua da minha infância, quando havia vento, trazia os murmúrios de comboios indo e vindo. O nome popular desta Estação de Coimbra-B é Estação Velha (dita velha, notai, desde a meninice de quem agora, maduro, a recorda). E ocorre-me que essa é uma adequada designação da própria Vida: Estação Velha desde que nascemos.

Ribeira de Pena, 06 de Dezembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.verride.blogspot.pt.]

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Santa Cruz


Para a MP (e para a VL)

A vida tem sido, apesar de tudo, uma augusta rua.
A viagem, não obstante tantos danos e tantas dores, tem sido amável e certa como poucas.
A casa fez-se e, embora etimologicamente imperfeita (e ainda não paga), tem o odor conhecido da una pele familiar.
De modo que comprei três rosas. Três alegres rosas. Três tiros lindos contra o frio, a distância e o medo do futuro.

Ribeira de Pena, 03 de Dezembro de 2012 (29 anos depois).
Joaquim Jorge Carvalho
[As imagens foram colhidas, com a devida vénia, em - respectivamente - http://www.segredosdecoimbra.blogspot.pt. e http://www.imagens.face.com.]

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Sextilha coimbrã (seguida de dois apontamentos em prosa)

I
Regresso a Coimbra agora
Como a um amor antigo
E quero vê-la de fora
Mas não consigo –
Ó minha cidade, meu amor!
Minha certa coisa interior!

II
A minha mãe foi de bela a velha a olhos vistos. Regressa de velha a bela a olhos escritos.

III
A minha mãe já teve as faces rosadas. Depois, foi-lhe fugindo o sangue, a cor. Parece-me, às vezes, um ser a caminho da transparência, esse estado último e cósmico em que, já não bem estando, inteira permanece afinal – em todas as pessoas, em todas as coisas.

Coimbra, 25 de Novembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.sonsoflyon.blogspot.com.]

domingo, 25 de novembro de 2012

Lógica da terra & lógica do céu

1. Ouvi uma vez mais certa abóbora disfarçada de jovem a defender, na televisão, a extinção das SCUT. Quem quer estradas boas, defendeu, paga-as.
Eis a lógica tão moderna, tão cheia de gel e de desassombro neoliberal: as estradas más, lentas, perigosas – são para os pobres. As boas são para os outros.
Ora, há nisto, concedamos, uma certa lógica mundanal.

2. O líder do grupo parlamentar do CDS-PP incomodou-se com a linguagem de um deputado do PCP sobre o “roubo” dos subsídios aos funcionários públicos e aos pensionistas. (“Roubo” foi a palavra usada pelo deputado comunista; é também a que costumo utilizar quando me refiro ao assunto. Roubo, isto é, roubo, ou seja, roubo, quero dizer – roubo!)
Já o senhor primeiro-ministro, há tempos, se insurgira contra esta linguagem, coitadinho.
Curiosamente, poucos parecem escandalizar-se com o facto de notáveis engravatados e cínicos em geral falarem do povo português como uma gente que viveu, durante décadas, “acima das suas possibilidades”.
Haverá também nisto, especulo, alguma espécie de mundanal lógica.

3. A minha contemporaneidade é politicamente um tempo nojento. Os que nos matam – ora mais à bruta, ora mais subtilmente – hão-de, estou certo, morrer impunes. Mas eu, perdoai as virgens da situação, vou à linguagem dos meus avós e desejo isto: que os responsáveis pelas políticas que temos, hoje, ardam um dia (nem que seja daqui a cem anos) nas profundezas do inferno.
Justiça poética, compreendeis? Ou, dito de outro modo, espécie de lógica divina.

Coimbra, 24 de Novembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.oclarinet.blogspot.pt.]

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

A MONTANHA DA ÁGUA LILÁS, de Pepetela: a história e as lições que uma história oferece



Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, mais conhecido como Pepetela, nasceu no dia 29 de outubro de 1941, em Angola. Em 1960, entrou na Faculdade de Engenharia de Lisboa, mas acabou por optar por Letras e, mais tarde, enveredou por uma carreira política, vindo a ingressar no MPLA – Movimento Popular para a Libertação de Angola, em 1963. Lutou pela independência de Angola e, por esse motivo, foi obrigado a fugir para França e para a Argélia. Após a libertação de Angola, o romancista foi para o seu país, em 1975, sendo então nomeado vice-ninistro da Educação, durante a presidência de Agostinho Neto. Durante o exílio, licenciara-se em Sociologia na Universidade de Argel, tornando-se mais tarde, já em Angola, professor na Faculdade de Arquitetura de Luanda.
Em 1997, Pepetela venceu o Prémio Camões, um dos mais importantes da língua portuguesa. Esta distinção ajuda a consagrálo como um nome muito importante da nossa literatura.
A Montanha da Água Lilás é uma espécie de fábula em que o escritor, para, além de contar uma história divertida, passada na selva, consegue fazer pensar os leitores em assuntos fundamentais da vida em geral (dos animais e – sobretudo – dos humanos).
A comunidade de macacos representa a própria organização das sociedades humanas. Há naquela sociedade da montanha diferentes modos de ser, de agir, de pensar. Há os que mandam e os que obedecem. Há os que gostam de trabalhar e os que são preguiçosos. Há os que são amáveis e generosos, há os que são arrogantes e agressivos. Quando se dá a descoberta de uma riqueza (a água lilás, que tem propriedades maravilhosas), deveríamos esperar, em princípio, uma melhoria significativa da vida da comunidade. Contudo, a novidade acaba por provocar transformações que, pouco tempo depois, significarão uma verdadeira degradação da vida do povo “lupi” e de todos animais em geral.
O livro acaba por ser, pois, uma lição sobre os perigos da ambição desmedida, do egoísmo, da inveja, da arrogância, da intolerância e da vaidade.
Os únicos seres que parecem resistir ao mal são um Pensador e um Poeta. O Pensador representa, claramente, a Filosofia (a capacidade de refletir sobre a vida e sobre o comportamento das sociedades e dos indivíduos). É a voz da Razão: vê, desde logo, o perigo que há em ceder à preguiça, ao egoísmo, à inveja, ao culto do lucro fácil, à arrogância.
Por sua vez, o Poeta (representante da Poesia, da Arte e do Sonho) tem, para além da sua natural inteligência, uma sensibilidade particularmente apurada que lhe permite saber, com antecipação, o que irá acontecer no futuro se os seus semelhantes teimarem em perseguir apenas a riqueza material, sem terem em atenção o bem-estar físico e psicológico dos seus semelhantes.
No fundo, o Pensador e o Poeta são, ali, os últimos resistentes. São, no fundo, os que sobrevivem sem perder o sentido ético (o sentido do Bem, da Verdade e da Justiça) e o sentido da Liberdade (pensar pela própria cabeça, sem medo de castigos e sem medo do esforço que uma vida livre e digna exige).
Não ler este livro é perder uma excelente história. E é também desperdiçar a oportunidade de dialogar com um importante escritor da língua portuguesa.

Arco de Baúlhe, 23 de Novembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Ensaio sobre a vida a (ha)ver


Gosto da quase-nudez da árvore outonal
Que pesarosa recorda o fim do Verão
E, cansada já do próprio cansaço, mal
Acredita ainda na ressurreição.

Arco de Baúlhe, 22 de Novembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A formosa foto foi colhida, com a devida vénia, em http://www.baixaki.com.]

domingo, 18 de novembro de 2012

A Sabedoria fora das bibliotecas

A minha amiga Olívia Sofia ofereceu-me recentemente, não pela primeira vez, um livro precioso. Título: História do Sábio Fechado na Sua Biblioteca. Autor: Manuel António Pina.
Como em tantos outros casos, Manuel António Pina escreveu um livro para adultos disfarçado de livro para crianças – ou, no mínimo, um livro para toda a gente disfarçado de livro para gente mais pequenina.
A lição no conto é muito simples: a verdadeira sabedoria está na vida. Voilà!
Na vida, expliquemo-nos, vivida, experimentada, feita de cores e cheiros e pele e vozes e animais e plantas e força e doença e amores e lutas e solidão e desertos e água e, sobretudo, de humanidade (que é tudo quanto há no nosso olhar consubstancial).
Um sábio desce da sua biblioteca (espécie de torre de marfim onde é suposto existirem todas as respostas sobre o que o mundo e a vida são) e descobre a vasta ignorância que há, afinal, nestes infinitos livros divorciados da rua, das gentes.
A História do Sábio Fechado na Sua Biblioteca confirma: não há verdadeira sabedoria sem humanidade. (É claro que, para mim - e decerto também para Pina – tão-pouco haveria humanidade sem a sabedoria dos livros. Adiante.)
Atrevo-me ainda a ver, nesta formosa moralidade do imorredoiro M. A. Pina, um murro nos queixos de governantes que trocam as pessoas por fanáticos números em Excel; uma bofetada nos catedráticos que trocam a intervenção na sociedade pelo olimpo chique de convenções amestradas; uma sova nos teóricos e curiosos da educação que trocam a realidade por obscenas demagogias sem coração nem vergonha.
A vida sabe mais dos homens que os livros, diz-lhes (diz-nos) Pina.
E não deixa de ser irónico que o genial autor no-lo diga em livro

Ribeira de 17 de Novembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

90 anos de Saramago – O Conto e o Canto da Ilha Desconhecida







A Biblioteca Municipal António Teixeira de Carvalho, do Arco, quis celebrar os 90 anos do nascimento de José Saramago. A bibliotecária, Maria José Alves, organizou uma pequena exposição com considerável parte da obra do escritor, desafiando-me, de caminho, a preparar e dinamizar uma sessão sobre o legado literário do nosso Prémio Nobel da Literatura.
De modo que, no Auditório da Biblioteca, reuniram-se hoje cerca de 75 alunos do nono ano, acompanhados por três professores (Rosário Mendes, Ângela Lourenço e eu próprio). O que tentei fazer, sobretudo, foi iniciá-los na delicada arte de ler a narrativa saramaguiana.
Pelo meio, dei-me conta de como a jovem audiência se comovia sinceramente com a história de amor entre o escritor e a sua segunda mulher, Pilar del Rio, jornalista e escritora espanhola. Sorriram ao reconhecimento do homem perante os méritos da namorada-esposa, mesmo em matéria de vitórias literárias ("Graças à sua inteligência, à sua capacidade criativa, à sua sensibilidade e também à sua tenacidade, a vida deste escritor pôde ter sido, mais do que a de um autor de razoável êxito, a de uma contínua ascensão humana"). Suspiraram perante as magníficas declarações de amor que Saramago, ao longo de 23 anos, constantemente fez a Pilar - como aquela, depois da pneumonia que o atirou durante meses para a cama do hospital e, mais tarde, para uma cadeira de rodas: “A Pilar, que não me deixou morrer" (A Viagem do Elefante); ou aquela em que, em As Pequenas Memórias, lamenta ter conhecido a mulher da sua vida tão tarde em sua vida: “A Pilar que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar.” Ou aquela em que, numa entrevista ao New York Times, Saramago afirma: "Se eu tivesse morrido antes de te conhecer, Pilar, teria morrido sentindo-me muito mais velho. Aos 64 anos, a minha segunda vida começou. Não posso queixar-me.“ Ou aquela que escutei no documentário Pilar e José, de Miguel Gonçalves Mendes: "Se tivesse morrido aos 63, antes de a conhecer, morreria muito mais velho do que serei quando chegar a minha hora." 
Os alunos do nono ano murmuraram um gentil espanto quando lhes disse que Pilar era, desde 2008, nome de uma rua em Azinhaga, na Golegã (Ribatejo), terra natal de Saramago - e de essa rua se cruzar com a Rua José Saramago, também ali, na Azinhaga. Disse-lhes que o enamorado escritor considerara, no dia da inauguração da rua com o nome do seu amor, que ali se concretizava um "terceiro casamento". Acrescentei-lhes ainda esse pormenor formoso de a espanhola amada ter então desejado que "todos os enamorados do Mundo se encontrem e deem um beijo naquela esquina", sendo que “aquela esquina” era a esquina onde as ruas José Saramago e Pilar del Rio se encontravam.
Não deixei de lhes lembrar esse pormenor delicioso de o primeiro encontro entre ambos em solo espanhol (na cidade de Sevilha), decerto quando ambos já se sabiam destinados um ao outro, os relógios marcarem as 4 da tarde – e de por isso todos os relógios na residência do casal em Lanzarote terem, para sempre, ficado a marcar as 4 horas em ponto
Dei-lhes ainda a conhecer a dedicatória em Caim, que é para mim a mais bela e mineral de todas quantas o apaixonado escritor inventou para Pilar: "A Pilar, como se dissesse água".
Acreditava que o fundamental, nesta ocasião, era dar a conhecer, mais do que pormenores biobibliográficos, a escrita de Saramago. Refiro-me à escrita propriamente dita, à escrita física, material, corpórea - coisa, digamos assim, de ver-ouvir-sentir. Para isso, escolhi como corpus um belo conto, escrito em 1987, por encomenda da Expo’98, intitulado O Conto da Ilha Desconhecida. Sabia bem, claro está, que a prosa do autor, aos iniciados, causa estranheza e tende a aportar não poucos escolhos. Era agora preciso, digamos assim, (re)aprender a ler.
Não sei se os meus leitores se lembram daquelas rodinhas suplementares que se usam para aprender a andar de bicicleta; eu julgo ter optado por algo semelhante na minha aulinha: utilizei a cor vermelha para as palavras ditas pelo homem que pediu um barco ao rei, a cor verde para as palavras ditas pelo rei, a cor azul para as palavras ditas pela mulher da limpeza, a cor castanha para as palavras ditas pelo capitão do porto, a cor preta para as palavras ditas pelo narrador, etc. Depois, quem quisesse, senhores, veria facilmente um sorriso nababo neste meu rosto quase cinquentão à medida que rapazes e raparigas iam lendo o texto, sem que se desse por falta de pontos de interrogação, pontos de exclamação, reticências. Juro-vo-lo! Ao fim de quatro ou cinco diapositivos, os alunos leitores entoavam com exemplar competência os comentários do narrador, as perguntas, os gritos (de espanto ou revolta) e as dúvidas das personagens.
Não é da minha gratidão a Saramago que vos queria aqui falar. É sim desta verdade, que muitos teóricos teimam em ignorar, de a promoção da leitura se fazer (se dever fazer) lendo. De a celebração da literatura e dos livros se fazer (se dever fazer) lendo.  De a dinamização da cultura se fazer (se dever fazer) fazendo.
No final d’O Conto da Ilha Desconhecida, o narrador diz-nos: “Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida [nome dado ao barco] fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma.”
Aproveitei para lembrar aos alunos do nono ano que escrever – como ler, como viver – é essencialmente um exercício de gente à descoberta de si própria. Ora, a navegação (i.e., a vida) não se faz com declarações gongóricas e burocráticas de - boas ou manhosas, reais ou falsas - intenções. Faz-se, meus amigos, soltando amarras, enfrentando o desconhecido, experimentando novos mares e navegando com a mais fiável e generosa de todas as bússolas – o nosso coração leitor.

Ribeira de Pena, 16 de Dezembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A primeira imagem (cartoon de Vasco) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.ponteeuropa.blogspot.pt. As fotos são de Maria José Alves.]