A Biblioteca Municipal António Teixeira de Carvalho, do Arco, quis celebrar os 90 anos do nascimento de José Saramago. A bibliotecária, Maria José Alves, organizou uma pequena exposição com considerável parte da obra do escritor, desafiando-me, de caminho, a preparar e dinamizar uma sessão sobre o legado literário do nosso Prémio Nobel da Literatura.
De modo que, no Auditório da Biblioteca, reuniram-se hoje cerca de 75 alunos do nono ano, acompanhados por três professores (Rosário Mendes, Ângela Lourenço e eu próprio). O que tentei fazer, sobretudo, foi iniciá-los na delicada arte de ler a narrativa saramaguiana.
Pelo meio, dei-me conta de como a jovem audiência se comovia sinceramente com a história de amor entre o escritor e a sua segunda mulher, Pilar del Rio, jornalista e escritora espanhola. Sorriram ao reconhecimento do homem perante os méritos da namorada-esposa, mesmo em matéria de vitórias literárias ("Graças à sua inteligência, à sua capacidade criativa, à sua sensibilidade e também à sua tenacidade, a vida deste escritor pôde ter sido, mais do que a de um autor de razoável êxito, a de uma contínua ascensão humana"). Suspiraram perante as magníficas declarações de amor que Saramago, ao longo de 23 anos, constantemente fez a Pilar - como aquela, depois da pneumonia que o atirou durante meses para a cama do hospital e, mais tarde, para uma cadeira de rodas: “A Pilar, que não me deixou morrer" (A Viagem do Elefante); ou aquela em que, em As Pequenas Memórias, lamenta ter conhecido a mulher da sua vida tão tarde em sua vida: “A Pilar que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar.” Ou aquela em que, numa entrevista ao New York Times, Saramago afirma: "Se eu tivesse morrido antes de te conhecer, Pilar, teria morrido sentindo-me muito mais velho. Aos 64 anos, a minha segunda vida começou. Não posso queixar-me.“ Ou aquela que escutei no documentário Pilar e José, de Miguel Gonçalves Mendes: "Se tivesse morrido aos 63, antes de a conhecer, morreria muito mais velho do que serei quando chegar a minha hora."
Os alunos do nono ano murmuraram um gentil espanto quando lhes disse que Pilar era, desde 2008, nome de uma rua em Azinhaga, na Golegã (Ribatejo), terra natal de Saramago - e de essa rua se cruzar com a Rua José Saramago, também ali, na Azinhaga. Disse-lhes que o enamorado escritor considerara, no dia da inauguração da rua com o nome do seu amor, que ali se concretizava um "terceiro casamento". Acrescentei-lhes ainda esse pormenor formoso de a espanhola amada ter então desejado que "todos os enamorados do Mundo se encontrem e deem um beijo naquela esquina", sendo que “aquela esquina” era a esquina onde as ruas José Saramago e Pilar del Rio se encontravam.
Não deixei de lhes lembrar esse pormenor delicioso de o primeiro encontro entre ambos em solo espanhol (na cidade de Sevilha), decerto quando ambos já se sabiam destinados um ao outro, os relógios marcarem as 4 da tarde – e de por isso todos os relógios na residência do casal em Lanzarote terem, para sempre, ficado a marcar as 4 horas em ponto
Dei-lhes ainda a conhecer a dedicatória em Caim, que é para mim a mais bela e mineral de todas quantas o apaixonado escritor inventou para Pilar: "A Pilar, como se dissesse água".
Acreditava que o fundamental, nesta ocasião, era dar a conhecer, mais do que pormenores biobibliográficos, a escrita de Saramago. Refiro-me à escrita propriamente dita, à escrita física, material, corpórea - coisa, digamos assim, de ver-ouvir-sentir. Para isso, escolhi como corpus um belo conto, escrito em 1987, por encomenda da Expo’98, intitulado O Conto da Ilha Desconhecida. Sabia bem, claro está, que a prosa do autor, aos iniciados, causa estranheza e tende a aportar não poucos escolhos. Era agora preciso, digamos assim, (re)aprender a ler.
Não sei se os meus leitores se lembram daquelas rodinhas suplementares que se usam para aprender a andar de bicicleta; eu julgo ter optado por algo semelhante na minha aulinha: utilizei a cor vermelha para as palavras ditas pelo homem que pediu um barco ao rei, a cor verde para as palavras ditas pelo rei, a cor azul para as palavras ditas pela mulher da limpeza, a cor castanha para as palavras ditas pelo capitão do porto, a cor preta para as palavras ditas pelo narrador, etc. Depois, quem quisesse, senhores, veria facilmente um sorriso nababo neste meu rosto quase cinquentão à medida que rapazes e raparigas iam lendo o texto, sem que se desse por falta de pontos de interrogação, pontos de exclamação, reticências. Juro-vo-lo! Ao fim de quatro ou cinco diapositivos, os alunos leitores entoavam com exemplar competência os comentários do narrador, as perguntas, os gritos (de espanto ou revolta) e as dúvidas das personagens.
Não é da minha gratidão a Saramago que vos queria aqui falar. É sim desta verdade, que muitos teóricos teimam em ignorar, de a promoção da leitura se fazer (se dever fazer) lendo. De a celebração da literatura e dos livros se fazer (se dever fazer) lendo. De a dinamização da cultura se fazer (se dever fazer) fazendo.
No final d’O Conto da Ilha Desconhecida, o narrador diz-nos: “Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida [nome dado ao barco] fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma.”
Aproveitei para lembrar aos alunos do nono ano que escrever – como ler, como viver – é essencialmente um exercício de gente à descoberta de si própria. Ora, a navegação (i.e., a vida) não se faz com declarações gongóricas e burocráticas de - boas ou manhosas, reais ou falsas - intenções. Faz-se, meus amigos, soltando amarras, enfrentando o desconhecido, experimentando novos mares e navegando com a mais fiável e generosa de todas as bússolas – o nosso coração leitor.
Ribeira de Pena, 16 de Dezembro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A primeira imagem (cartoon de Vasco) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.ponteeuropa.blogspot.pt. As fotos são de Maria José Alves.]
Sem comentários:
Enviar um comentário