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Número de Ondas

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (22)


 
O teste do Estado Novo

 Estou recenseado a cerca de 250 quilómetros do local onde trabalho há já 20 anos. Nunca me apeteceu mudar o local de voto e, com feroz militância democrática, nunca incumpro o dever de votar – ainda que o exercício me fique caro em gasóleo, portagens, fadiga e desilusões.
Confesso que as próximas eleições para a presidência da República inauguraram em mim, pela primeiríssima vez, a miserável tentação do absentismo. Deve haver nisto algo de preguiça, admito. Mas é sobretudo a sensação de que o meu voto, como o dos outros, pouco contribuirá para a melhoria do país, da sociedade, da nossa vida em concreto.
Creio que Aníbal Cavaco Silva é o responsável maior pela banalização e menorização do lugar e da função. Há-de parecer arrogante o que aqui vos digo, mas lamento muito a passagem pela presidência do presidente cessante. Para um cargo assim, exigir-se-ia alguém com outra profundidade intelectual e outra densidade cívico-humanística. Ficarão para a História os seus discursos redondos, vagos e genéricos, decerto candidatos ao título num campeonato mundial de clichês que houvesse. O pior de tudo, mesmo assim, foi a sua falta de currículo democrático. Deixai que me explique.
Eu não sei o que faria se tivesse 20-30 anos em pleno Estado Novo. Teria lutado contra a guerra colonial, a Pide, a falta de democracia – ou teria, como tantos, aceitado as regras em vigor, salvaguardando a carreira, o conforto e a segurança mui pessoais? Eu gosto de pensar que teria combatido a ditadura, escrito e gritado pela liberdade, conjurado contra a guerra. Mas não posso, em rigor, garantir que seria isso a acontecer. Não estava lá.
No caso dos que, como Cavaco, eram adultos na época do Estado Novo, sabemos o que se passou. Ele nunca lutou contra o fascismo porque – explicou – estava ocupado a estudar. Fez, aliás, o seu doutoramento em Inglaterra, pátria secular do parlamentarismo democrático, sem que tal lhe acordasse angústias comparativas. Nunca se incomodou publicamente com o atraso português em matéria de condições de vida e de liberdades. Nunca se lhe conheceu uma palavra crítica sobre a guerra colonial. Aceitou o statu quo histórico e fez pela vidinha.
Outos, como Soares, Cunhal, Jorge Sampaio, ou – em plena Assembleia Nacional – como Francisco de Sá-Carneiro ou Pinto Balsemão, ousaram indignar-se e lutar, com naturais prejuízos pessoais e profissionais.
Não julgo Cavaco pelo que, à época, não fez. Não me sinto sequer superior, porque não posso garantir (já o disse atrás) que, em contexto igual, eu tivesse sido melhor do que ele. Mas um presidente da República deveria ser sempre, perdoai o romantismo, um dos melhores exemplos da nação, e esse pressuposto compreende a questão da coragem e da plena cidadania.
Pois, talvez eu próprio não passasse no teste do Estado Novo. Não o sei. Mas sei que Cavaco, esse, não passou mesmo – e que, contudo, foi presidente do nosso país por dois mandatos consecutivos.

Ribeira de Pena, 07 de Janeiro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 14-021-2016.]

domingo, 3 de janeiro de 2016

Escola Preparatória Rainha Santa Isabel (Coimbra)


Em 1976 eu já amava o futebol
E a literatura.
No futebol escondia dos outros o segredo
Dos versos.
Nos versos, ai de mim, não podia bem esconder
Fosse o que fosse.
Naquele tempo eu já era contemporâneo
Do Abrunheiro
Mal suspeitando do génio literário por ali crescendo
Metido no comum contexto da escola
Lendo os mesmos livros
Consciente do tesouro de haver Pai e Mãe
Feliz por não haver ainda a morte –
Sujeito também à beleza absoluta das mulheres.
Na nossa escola havia certas flores
(Ou anjos, ou fadas, ou improváveis princesas)
E ambos aprendemos à roda do Sol que elas eram
Sobre o amor
O paradoxo de ser obrigatório a dor
Para se viver
(Para inteiramente se viver).
Depois o Daniel deveio poeta maior
(O mais importante do seu meu nosso tempo)
E eu segui sobretudo a prosa:
Ele diz a beleza e as saudades
Da imortalidade perdida.
Eu, enfim, conto a mesma história
De perdas ausências faltas.
O nosso destino tem esta cumplicidade
Do verbo dito-inventado em português.
Mas o mais engraçado, talvez, é algumas flores
(Ou fadas, anjos, princesas impossíveis)
Serem leitoras de ambos e não perceberem
(Ou então fingirem não perceber)
Que a nossa escrita
Tantas vezes
É por causa delas!

Coimbra, 01 de Janeiro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem é do filme Cinema Paraíso, de Giuseppe Tornatore, e foi colhida, com a devida vénia, na internet (via wikipédia).]

ZONA DE PERECÍVEIS (21)


Mondego & Tempo


No coração de cada homem, há um rio mais importante do que os outros. Faz parte, quase sempre, do cenário da terra natal, mas vai além: é uma marca de identidade muito profunda, um sinal, uma sina.
Eu vi o Mondego do colo da minha Mãe, durante as festas da Rainha Santa; da janela do autocarro escolar (com a professora primária aos berros), em direcção às piscinas de Celas; pelo vidro traseiro do carro de meu Pai, a caminho do campo da Arregaça, onde jogava o União de Coimbra. Cheguei a tomar banho nas suas águas, com amigos de infância e adolescência, em recantos do mítico Choupal, numa espécie de lago que designávamos por “Frigorífico”. Mergulhávamos ali de calções ou cuecas, e havia até quem se afoitasse nu (esses estavam sujeitos a partidas cujos autores nunca revelarei, mesmo porque as vítimas ainda hoje, à lembrança do que passaram, fazem má cara).
A vida já me pôs em contacto com outros rios célebres, como o Tejo, o Douro, o Minho, o Lis, o Nabão, por exemplo. Mas o meu rio, não há dúvida, é o Mondego. Nenhum se lhe compara nesta enviesada avaliação que, compreendei, se funda muito mais no amor que na wikipédia.
A ideia de que os rios são uma imagem da vida, de tão usada por filósofos, poetas e padres, tornou-se clichê. Mas continua a fazer sentido. O mesmo se aplica à ideia de Destino como a busca da exacta foz onde desaguar, só então se atingindo essa plenitude e essa liberdade a que chamamos mar.
Contudo, a partir dos 40 anos, mais ou menos, transcorrida metade da nossa existência provável, tendemos à reformulação desta metáfora (ou alegoria). Daí em diante, a vida já não se vê apenas como um percurso entre a nascente e o mar; é também a viagem inversa - do mar onde estamos até a alguns lugares-tempos de onde viemos, certas circunstância em que fomos córregos novos, ribeiros moços, rios cheios de saúde e de causas. Na verdade, o passado e o presente, na fase da maturidade, tendem a (con)fundir-se. O mar que deviemos não se esquece dos fios de água doce anteriores a agora.
Lembrei-me disto neste Natal, enquanto ajudava a minha Mãe a subir umas escadas, no regresso do centro comercial, após a travessia da ponte do Açude, num dia em que o Mondego estava cheio de água e de paz. Ela estava cansada – da viagem e da vida toda. Procurou apoio em mim e eu dei-lho. Como se ela fosse minha filha.


Coimbra, 29 de Dezembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 31-12-2015.]

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (20)



O Natal como Júlio Dinis

Dou por mim a cruzar a ideia de Natal com Júlio Dinis. Quando ouço colegas e amigos fazendo planos para “ir à terra” passar a consoada, ocorre-me que a minha aldeia natal é a mesma do José das Dornas, da Morgadinha dos canaviais ou do Tomé da Póvoa. E aquele jantar de família, a 24 de Dezembro, apesar das tantas ausências, é um regresso provisório ao mundo simples e grato que Júlio Dinis inventou.
Comecei a ler este escritor aí pelos dez, onze anos. O primeiro romance que devorei foi As Pupilas do Senhor Reitor. Logo a seguir, veio Uma Família Inglesa (que revisitei no ensino secundário por esta obra fazer, à época, parte do cânone escolar). Depois, A Morgadinha dos Canaviais. Finalmente, Os Fidalgos da Casa Mourisca.
O que me encantou, desde muito cedo, foi a clareza e elegância da prosa, claro, mas também a espantosa qualidade dos vívidos diálogos e a tão perfeita arte de bem contar uma história. Uma história bem engendrada funda-se numa intriga, mas tem de, para ser literariamente relevante, compreender mais do que isso: é preciso que nela compareçam, de forma natural, elementos representativos da vida, da sociedade, da humanidade em movimento. Dessa circunstância depende a profundidade da adesão leitora, que decorre muito da verosimilhança do contexto, da ilusão de vida verdadeira em cada cena narrada, da concomitância do tempo narrativo com o tempo da própria existência física. Num grande romance percebe-se o tempo a passar, a vida a acontecer.
Os críticos de Dinis acusam-no de haver criado narrativas demasiado simples, na forma e no conteúdo. E a isto acrescentam que os romances são retoricamente ingénuos, porque – imagine-se – há neles a percepção de que os “bons” são sempre premiados e os “maus”, ou os “menos bons”, são sempre castigados.
Eu gosto de pensar que a principal característica de Júlio Dinis é a de, à maneira dos melhores clássicos, ele ter percebido que um romance pertence ao modo narrativo, logo que a eficácia e brilho da obra dependem, sobretudo, da arte de bem contar. A escrita serve (humildemente) a história – ou, no máximo, é consubstancial à história.
Em boa parte, é essa humildade do escritor que torna amável a literatura dinisiana. “Amável” significa aqui, antes de mais, literatura susceptível de ser amada.
Quanto ao resto (isso de a realidade não ser assim tão simples e bela como a que encontramos nas narrativas dinisianas), busco a resposta na saudosa – e genial – Maria Lúcia Lepecky, citando-a de cor: que culpa tem Júlio Dinis que a História, ao contrário das histórias do autor d’As Pupilas, se esqueça de acontecer?

Ribeira de Pena, 21 de Dezembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho

[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 25-12-2015.]

sábado, 19 de dezembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (19)


O duro desejo de durar


Há pouco tempo, um médico alertou-me, com cara de poucos amigos, para a iminência de algum ataque cardíaco. Mal me olhava, tão escandalosos lhe pareciam os valores da diabetes e do colesterol que lia nos exames. Rematou o aviso com medicação, ordem para novo estilo de vida e requisição de novas análises. Saí do consultório assustado como um empregado bancário que, por pouco, houvesse sobrevivido a um assalto.
Eu dou-me bem com a mortalidade, enquanto conceito, mas custa-me muito a concretude da morte propriamente dita. Com insuspeitada autodisciplina, abracei uma cínica dieta que, entre outras violências, compreendeu a abolição dos doces e sumos, a redução do número de pães consumidos por dia, a limitação dos hidratos de carbono, o respeito espartano pelos horários das refeições. Mais: obriguei-me a um exercício físico regular e quase diário, apesar do frio e da chuva frequentes neste cantinho transmontano onde resido. O sumário de tudo quanto aqui digo é simples: não quero (ainda) morrer.
Deu-se entretanto o caso de uma moça muito jovem, que conheci desde a sua infância, ter sido assassinada por um cancro. E de um rapaz de 18 anos, que ainda há pouco se cruzava comigo nos corredores da escola, se ter suicidado por (disseram-me) desgosto de amor. E de haver esta epidemia de os pais e as mães dos meus contemporâneos estarem a partir. O mais paradoxal é, em cada funeral, ouvirmos o consabido estribilho: “É a vida.”
Um grande poeta romeno, Paul Célan, escreveu um magnífico verso sobre esta assombração que me acompanha, desde a meninice, perante o mistério e a indignidade da morte: “le dur désir de durer” (o duro desejo de durar). No embalo desta aliteração, ecoa a contradição milenar da condição humana – permanentemente projectada sobre o futuro, mas consciente da sua inevitável finitude.
Há dias, vi um episódio muito interessante de “Odisseia no espaço”, com apresentação do físico Neil deGrasse Tyson, sobre a história de Gilgamesh, rei da Suméria (quase 3.000 anos AC). O narrador descrevia, com pormenor e imaginação, as conquistas desse herói mais ou menos lendário, sublinhando a sua demencial pulsão: descobrir o segredo da imortalidade. Acontece que a história desta personagem foi descoberta num épico mesopotâmico, escrito em tábuas com caracteres cuneiformes, exactamente com o título de Epopeia de Gilgamesh. Isto é, a imortalidade – ou algo parecido – talvez estivesse (talvez esteja) na palavra escrita.
Já não é mau. 

Ribeira de Pena, 12 de Dezembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 15-12-2015.]

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Forever Music


 
Lembro-me do gesto antes da música –

O rapaz retirando o vinil do plástico

A conduzir a agulha do gira-discos

(Delicadamente)

Lembro-me de mim –

O rapaz sentando-se no sofá antigo

A letra da canção sobre os joelhos

O silêncio antes da música.

Lembro-me do disco rodando –

O céu saindo pelas colunas do som

A voz rouca dos versos, a guitarra eléctrica

O ritmo da vida por um baterista louco.

Lembro-me da música –

Esse rio deslizando para tão longe dali

Essa ilusão de eternidade feliz

Até ao inevitável mutismo

(Porquê?)

Da foz.

Nada me interessa senão recordar

(Delicadamente)

A música, ou aquilo de colocar a agulha

Sobre a faixa preferida do álbum

E de novo saborear a eternidade

Às voltas como se não houvesse

Fim.

 
Arco, 10 de Dezembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.audiopt.net.]

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (17)


5, talvez 6 sentidos

Almeida Garrett, que decorosamente convertia a sua libido em versos com flores e filosofia, versou o tema dos cinco sentidos aí por 1853. Num poema de Folhas Caídas, percebemos que a experiência sensorial do sujeito poético é fatal ponto de partida para a evocação e a presentificação da mulher amada.
Lembrei-me deste fenómeno ao passar pela porta de uma casa transmontana, logo pela manhã. Cheirava a café com leite. De imediato, saiu um jacto do meu coração em direcção à infância: a minha Mãe na cozinha preparando o pequeno-almoço, assim o odor quente de leite e café invadindo os quartos como uma carícia. Viaja-se pelo cheiro, portanto. Alguns perfumes devolvem-nos namoros que eram para ser eternos, ou então simples enlevos secretos e, não vos digo mais nada, proibidos. (Tive uma colega que, ao cheiro da bosta pecuária, se lembrava do querido lar paterno, fenómeno decorrente de a família criar gado e produzir leite para venda.)
Acontece-me o mesmo com alguns sons: a chuva no telhado que, coitadinha, se veio a tornar clichê de maus escribas, é quase sempre uma querida música com refrão familiar. E há algumas canções que logo nos tiram a poeira da idade e do cinismo, tornando-nos por segundos novamente românticos.
Também se viaja pelo paladar, claro. Já me sucedeu voltar à amada praia de Mira, ao tempo em que (como diria o senhor Pessoa) ninguém estava morto, apenas pela degustação de caranguejos ou de carapaus fritos.
E o tacto? A minha Mãe, que nunca leu Garrett, guardou certo cobertor que o mais novo da prole exigia, quando muito infante, para dormir. Porque, sabei, a textura do têxtil é hoje passaporte mágico para aquele tempo da absoluta inocência e felicidade.
Sobre a visão, nem valeria a pena escrever, tão desmesurado é o poder de, pelo olhar, sabermos quase tudo dos ganhos e das perdas da nossa existência: o meu sobrinho-neto gritando à roda da mesa natalina e a cadeira do meu amigo Conceição muito vazia do seu bigode trocista.
Um, dois, três, quatro, cinco sentidos. Não rima, mas é mesmo, creio eu, a conta que Deus fez. Há quem fale de um sexto sentido, normalmente associado às mulheres. Talvez seja verdade. A senhora D. Lurdes, uma querida vizinha nossa, deu conta às filhas, há um ano, de ter sentido, em certa (exacta) hora do dia, uma angústia nunca antes experimentada: era – disse - decerto o marido, internado no hospital por essa altura, a despedir-se do mundo. E, com efeito, o senhor Luís Monteiro, nesse instante, separara-se de nós para sempre.

Coimbra, 30 de Novembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho

[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 04-12-2015.]

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Rua Augusta, n.º 25






Lembro-me vagamente desse tempo –
Tu inexistindo-me uns anitos
Ainda antes de me fazeres falta.
Há até testemunhas desse calendário,
Fotografias juvenis em que não estás
E por vezes ocorre-me que é engano.
Como poderia não haver o teu sorriso
A tua voz a tua pele o cheiro a ti
As tuas mãos consubstanciais às minhas?
É tão bom ser para sempre o nosso presente!
Partilhamos filha casas livros amigos contas
Mortes nascimentos medos sonhos muito Mar.
Digo: amo-te.
Tu já sabes (eu sei que sabes);
Mas não exactamente quanto,
Meu amor.
Olha que eu te amo mais do que algum dia saberás!

Ribeira de Pena, 03 de Dezembro de 2015, no 32.º aniversário do meu casamento com a MP.
Joaquim Jorge Carvalho

[As fotos - enviadas pela VL por Email sem que a MP soubesse - são de há 32 anos. Portanto, de ainda agora.]

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (16)

CR7, ou o cronista outra vez criança

A paixão pelo futebol é, em mim, uma das mais puras e perenes marcas da infância. Não tenho vergonha deste amor pueril e deliberadamente me sujeito à alienação semanal que ele compreende: a minha vida presa por uma bola na trave, uma defesa impossível, certo drible corrido que, por instantes, vale mais que literatura, emprego, saúde, vizinhança.
Ao longo de anos, coleccionei ídolos, sobretudo os de leão ao peito. O clubismo, como eu o vejo, é sempre uma história de amor – chega-nos dos pais, dos irmãos, de um primo divertido, de um amigo. Às vezes, também da própria dinâmica de vitória que, em certos ciclos (anos, décadas), alguns emblemas protagonizam e mediaticamente celebram.
Eu sou do Yazalde, do Damas, do Jordão, do Salif Keita, do Manoel, do Futre, do Figo, do Cristiano Ronaldo e, mais recentemente, do Bryan Ruiz. Tendo a desculpar, com preconceito sanguíneo, as falhas dos meus eleitos, desviando culpas para o estado do terreno, a brutidade dos adversários, a inépcia do treinador, a má vontade dos colegas, a venalidade do árbitro. Tudo isto há-de soar a criancice, mas (já vo-lo disse) é uma criança que sobre isto perora.
Tem-me doído muito, na presente época futebolística, o brilho mais baço do Cristiano Ronaldo. Sou seu feroz adorador desde há uns bons doze anos. Há nele tudo o que se quer de um grande jogador: capacidade físico-atlética, técnica, talento, ambição, eficácia. Marca com o pé esquerdo e o direito, marca de cabeça, desmarca-se, cruza e dribla de forma perfeita, é veloz como um felino na selva, eleva-se com a majestade de uma ave maior.
Os detractores, normalmente, diminuem-no face a Messi com um argumento escandaloso: o argentino é – dizem – um talento natural; a capacidade de Ronaldo decorre, ao invés (?), de muito treino, logo – dizem – é artificial. Como se a busca (esforçada, sistemática, persistente) da perfeição fosse, afinal, sinal de fraqueza ou demérito!
Eu, que admiro Messi porque gosto de grandes jogadores, sou do Ronaldo. E não quero saber se ele é vaidoso, arrogante, egocêntrico, infiel às namoradas. Nada tenho que ver com tal. Fernando Pessoa, o meu CR7 da poesia, também se dedicava ao álcool e à astrologia, e isso é, para mim, pouco mais que um folclore menor, quiçá irrelevante.
Dou graças, sim, por ser contemporâneo de Cristiano Ronaldo, o divino número 7 da selecção portuguesa.

Ribeira de Pena, 24 de Novembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho

[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 27-11-2015.]

domingo, 22 de novembro de 2015

Lugar & espaço



Maria Lúcia Lepecky é uma brasileira responsável por alguns dos melhores estudos jamais feitos sobre (e pela) literatura portuguesa. Faleceu dois dias antes de eu ter defendido a minha tese de doutoramento «Acção cenas e personagens na narrativa dinisiana: as pupilas do senhor escritor». É dela uma maravilhosa definição sobre "espaço literário": por oposição a "lugar" tout court, espaço seria, na ideia da autora, um "lugar semantizado", isto é, um lugar com sentido. Este sentido decorreria, muito simplesmente, da presença de humanidade (ou, em alternativa, direi eu, da saudade da presença humana).
Dito de outro modo: os lugares assumem-se como espaços se a si se acrescentarem olhares e passos de gente, sentimentos e emoções, histórias de amor. Em boa verdade, estes lugares, quando elevados à categoria de espaços, são consubstanciais à própria humanidade.
Não é preciso ler Júlio Dinis (ou outros escritores) para entender bem o que acima se diz. Basta passar pelos lugares que fazem parte da nossa vida - lugares da infância, da adolescência, da jovem adultez, da maturidade. Mesmo que, em vez da vozearia de uma dezena de crianças, no pátio do meu prédio, haja apenas o silêncio de um rectângulo de cimento, deserto e envelhecido. Mesmo que, em vez de centenas de operários entre a Fábrica da Estaco, a Fábrica da Cerveja, a Termec, a Fábrica da Triunfo, haja simplesmente ruínas e vegetação daninha, a rua vazia de economia e de raparigas louçãs. Mesmo que, em vez do Café A Brasileira, haja um pronto-a-vestir ou uma sala desocupada dizendo "Trespassa-se". Mesmo que, em vez de árvores, a minha rua tenha hoje prédios e prédios e prédios, cimento sem cor nem frutos. Esses lugares são espaços porque eu lhes empresto o meu olhar, o meu coração. A minha memória cheia de saudades.
A aldeia que Júlio Dinis inventou (e que eu amo) é um espaço também meu, porque o sinto e percebo como lugar com humanidade. Lugar comigo dentro.

Coimbra, cidade maravilhosa, 22 de Novembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida com a devida vénia, no jornal As Beiras.]

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (15)

O direito à rotina

Por acidente de amor, coube-me em sorte desposar uma madeirense, de tal resultando que, ao longo dos anos, curti parte das férias estivais na maravilhosa cidade (antes, vila) de Machico. Quando lá, gosto de não ter automóvel a meu cuidado e de, feliz pedestre entre pedestres, acordar cedo, seguir com vagar até ao quiosque fronteiro à praia e comprar jornais, escolher uma mesa ao canto da pastelaria mais à mão para café e queijada, beber-comer-ler sem pressa, seguir depois para a praia, estender a praia sobre o calhau vulcânico, saborear o Sol, mergulhar, antes do corpo, os olhos no oceano, esperar que a mulher e a filha cheguem, conversar sobre os nadas e os tudos da vidinha e da Vida, almoçar baratamente, passear a digestão pelo largo da igreja, regressar à praia, dormir embalado pela canção das ondas e da vozearia humana que haja à volta, revisitar a frescura do mar - e enfim regressar à casa da família insular, passando de caminho, talvez, pelo hipermercado para comprar pão, fruta e peixe.
Nos primeiros tempos, o meu sogro afligia-se com esta minha rotina, temendo que se tratasse de um grande aborrecimento. Se calhava cruzar-se comigo, desculpava-se e prometia que, no fim-de-semana, se ele tivesse tempo, iríamos fazer algo de diferente (uma viagem ao norte da ilha, um almoço em certo restaurante do Caniçal, etc.). Acho que nunca verdadeiramente acreditou em mim quando lhe dizia, com absoluta sinceridade, que eu amava aquela repetição voluntária dos dias, que via como consubstanciação da querida tranquilidade e do pleno senhorio do Tempo.
Lembrei-me desse amor pela rotina logo que a televisão deu conta da carnificina ocorrida em Paris. Creio que a magnitude dessa estratégia se mede, para além do número assustador das vítimas mortais e dos feridos, também pela interrupção, quiçá para sempre, da normalidade. Ir ao Café lanchar ou comprar pão, ir ao cinema, ir à discoteca, ir a um museu, ir ao futebol, namorar num jardim público ou nos corredores de um centro comercial – tenderão a passar a situações perigosas (e, no limite da previsível paranóia, a evitar). No último domingo, suspendi a leitura do jornal, no Café, por ter visto sentar-se, em mesa próxima, certo desconhecido transportando uma mochila…
A Liberdade, como a vejo, tem essa concretude das manifestações da minha humanidade mais simples. O terrorismo é, em primeiro lugar, inimigo da Paz, naturalmente. Mas também, pobres de nós, da amável rotina que era, há tão pouco tempo, um inquestionável direito das pessoas de bem.

Ribeira de Pena, 16 de Novembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho

[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 19-11-2015.]

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (14)

Presente suspenso

 0.           Nota prévia: Não faria sentido eu incomodar os leitores com dores pessoais, excepto se a prosa significasse, tocada pelo vosso próprio entendimento, um ponto de encontro verbal e uma forma (cúmplice) de aconchego. Dessa premissa parto.

1.           É uma menina muito linda, sempre com um sorriso cheio de luz no rosto e nos gestos. Vive com a tia, porque os pais pereceram há uns anos num acidente rodoviário. Está no 9.º ano de escolaridade: é boa aluna e pratica desporto.

2.           A tia é, como eu, professora. Dá aulas a alunos do primeiro ciclo. Dadas as circunstâncias, ela vê aquela miúda tão sua filha como a que deu à luz. As duas pequenas não são, portanto, primas - são irmãs. Jogam ambas futebol de salão no Grupo Desportivo de Ribeira de Pena e estão quase a terminar o ensino secundário.

3.           Vai para a universidade e lamenta-se, sorrindo embora, por não haver emprego que lhe permita fixar-se, um dia, na vila onde cresceu e onde, com frequência, nos cruzamos.

4.           Vejo-a (salvo erro, em Vila Real), já com ar de senhora crescida, mas sempre alegre e fresca como uma brisa de Primavera. Está quase licenciada e depois fará mestrado, como é costume nos dias que correm.

5.           É mestre já, na área de Fisioterapia. Vai para o estrangeiro à procura de trabalho. Disse-me, sorrindo como aquela aluna do 9.º ano, há uns anos, que a nossa casa é onde estivermos bem.

6.           Está no hospital, no Porto, disse-me a minha mulher. Tem uma doença grave, mas “aquilo” parece estar circunscrito e, em princípio, salva-se.

7.           Morreu hoje, aos 4 de Novembro de 2015. Complicações inesperadas, disseram-me. Vou amanhã, com a minha mulher, ao funeral, ambos atordoados e indignados com o brutal cinismo do Inverno.

8.           A Carla é (para sempre) uma menina muito linda, com aquele sorriso de luz. Ainda que me chamem doido, não saio desse Presente.

 
Ribeira de Pena, 04 de Novembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 11-11-2015.]

Merceeiro local


Queria ter uma mercearia
Antiga, artesanal e a granel;
Aviar porções a olho no papel
E apontar no rol a quantia;

Ter tempo de entreter cada cliente
Saber de cada medo ou esperança;
Ser um entre pares que, no presente,
São cúmplices d'idade e vizinhança.

Queria ser merceeiro na cidade
Num bairro discreto e popular;
Ser parte da pacata sociedade.

À hora, pelas sete, de fechar
Passar no Café Realidade
E pôr-me à janela a poetar.

Cabeceiras de Basto, 11 de Novembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.pequenoscriadores.blogspot.com.]

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (13)

Ser assim ou assim-assim

  Fernando Paulouro Neves, na sua última crónica de “Notícias do Bloqueio” (na página 4 d’O Ribatejo), fala do caso Luaty Beirão com lucidez e elegância exemplares. Sobre esta situação concreta, portanto, não carece o jornal da minha prosa.
  Mas o caso remete-me para uma questão ética e moral (ainda) mais lata e profunda, passe a presunção: a do dever a que cada indivíduo está ontologicamente obrigado perante certos dilemas - momentos em que, digamos assim, não há direito a opções cinzentas, ao conforto do advérbio “talvez”, à prudência do adiamento, à cobardia da invisibilidade ou da indiferença.
 Temo que, ao contrário do que celebra Manuel Alegre na Praça da Canção, nem sempre haja alguém que, no momento certo e necessário, diga “Não” (ou “Sim”, conforme o contexto). Perante o extremo sofrimento físico e psicológico, que faria cada um de nós? Entre o emprego e a dignidade, entre a segurança e a liberdade, entre a refeição e a razão, entre a verdade e a sobrevivência – o que escolheria, se tivesse mesmo de escolher, cada um de nós?
 Ora, como diz certa personagem de Felizmente há luar!, de Luís Sttau Monteiro, há homens que se destacam da maioria e, pelo seu exemplo, nos obrigam a olhar ao espelho de nós próprios.
  Heróis como Luaty ajudam-nos a perceber o que, para além do que somos, poderíamos (deveríamos?) ser. Porque às vezes a vida cansa, mas um homem dança. Às vezes a meta não se vê, mas um homem crê. Às vezes o chão magoa, mas um homem voa. Às vezes o percurso é triste, mas um homem resiste. Às vezes não há caminho, mas um homem faz o caminho.


Ribeira de Pena, 02 de Novembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
 [Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 05-11-2015. As últimas frases do texto inscrevem, na presente prosa, versos de um poeminha meu já publicado em “Muito Mar”, “Viver apesar de”.]

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

In memoriam Carla Gil (1987-2015)



É belo e breve o voo das borboletas, esses seres meio flores, meio Sol que cruzam, por instantes, as nossas vidas cinzentas. Digo adeus daqui a uma querida beleza voadora que partiu hoje, tão demasiado cedo, cheio de saudades daquele seu sorriso lindo, cheio (sempre) de flores e Sol. Adeus, tão linda Carla!

Ribeira de Pena, 04 de Outubro de 2015.

Joaquim Jorge Carvalho