Confesso que as próximas eleições para a presidência da República inauguraram em mim, pela primeiríssima vez, a miserável tentação do absentismo. Deve haver nisto algo de preguiça, admito. Mas é sobretudo a sensação de que o meu voto, como o dos outros, pouco contribuirá para a melhoria do país, da sociedade, da nossa vida em concreto.
Creio que Aníbal Cavaco Silva é o responsável maior pela banalização e menorização do lugar e da função. Há-de parecer arrogante o que aqui vos digo, mas lamento muito a passagem pela presidência do presidente cessante. Para um cargo assim, exigir-se-ia alguém com outra profundidade intelectual e outra densidade cívico-humanística. Ficarão para a História os seus discursos redondos, vagos e genéricos, decerto candidatos ao título num campeonato mundial de clichês que houvesse. O pior de tudo, mesmo assim, foi a sua falta de currículo democrático. Deixai que me explique.
Eu não sei o que faria se tivesse 20-30 anos em pleno Estado Novo. Teria lutado contra a guerra colonial, a Pide, a falta de democracia – ou teria, como tantos, aceitado as regras em vigor, salvaguardando a carreira, o conforto e a segurança mui pessoais? Eu gosto de pensar que teria combatido a ditadura, escrito e gritado pela liberdade, conjurado contra a guerra. Mas não posso, em rigor, garantir que seria isso a acontecer. Não estava lá.
No caso dos que, como Cavaco, eram adultos na época do Estado Novo, sabemos o que se passou. Ele nunca lutou contra o fascismo porque – explicou – estava ocupado a estudar. Fez, aliás, o seu doutoramento em Inglaterra, pátria secular do parlamentarismo democrático, sem que tal lhe acordasse angústias comparativas. Nunca se incomodou publicamente com o atraso português em matéria de condições de vida e de liberdades. Nunca se lhe conheceu uma palavra crítica sobre a guerra colonial. Aceitou o statu quo histórico e fez pela vidinha.
Outos, como Soares, Cunhal, Jorge Sampaio, ou – em plena Assembleia Nacional – como Francisco de Sá-Carneiro ou Pinto Balsemão, ousaram indignar-se e lutar, com naturais prejuízos pessoais e profissionais.
Não julgo Cavaco pelo que, à época, não fez. Não me sinto sequer superior, porque não posso garantir (já o disse atrás) que, em contexto igual, eu tivesse sido melhor do que ele. Mas um presidente da República deveria ser sempre, perdoai o romantismo, um dos melhores exemplos da nação, e esse pressuposto compreende a questão da coragem e da plena cidadania.
Pois, talvez eu próprio não passasse no teste do Estado Novo. Não o sei. Mas sei que Cavaco, esse, não passou mesmo – e que, contudo, foi presidente do nosso país por dois mandatos consecutivos.
Ribeira de Pena, 07 de Janeiro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 14-021-2016.]