Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (14)

Presente suspenso

 0.           Nota prévia: Não faria sentido eu incomodar os leitores com dores pessoais, excepto se a prosa significasse, tocada pelo vosso próprio entendimento, um ponto de encontro verbal e uma forma (cúmplice) de aconchego. Dessa premissa parto.

1.           É uma menina muito linda, sempre com um sorriso cheio de luz no rosto e nos gestos. Vive com a tia, porque os pais pereceram há uns anos num acidente rodoviário. Está no 9.º ano de escolaridade: é boa aluna e pratica desporto.

2.           A tia é, como eu, professora. Dá aulas a alunos do primeiro ciclo. Dadas as circunstâncias, ela vê aquela miúda tão sua filha como a que deu à luz. As duas pequenas não são, portanto, primas - são irmãs. Jogam ambas futebol de salão no Grupo Desportivo de Ribeira de Pena e estão quase a terminar o ensino secundário.

3.           Vai para a universidade e lamenta-se, sorrindo embora, por não haver emprego que lhe permita fixar-se, um dia, na vila onde cresceu e onde, com frequência, nos cruzamos.

4.           Vejo-a (salvo erro, em Vila Real), já com ar de senhora crescida, mas sempre alegre e fresca como uma brisa de Primavera. Está quase licenciada e depois fará mestrado, como é costume nos dias que correm.

5.           É mestre já, na área de Fisioterapia. Vai para o estrangeiro à procura de trabalho. Disse-me, sorrindo como aquela aluna do 9.º ano, há uns anos, que a nossa casa é onde estivermos bem.

6.           Está no hospital, no Porto, disse-me a minha mulher. Tem uma doença grave, mas “aquilo” parece estar circunscrito e, em princípio, salva-se.

7.           Morreu hoje, aos 4 de Novembro de 2015. Complicações inesperadas, disseram-me. Vou amanhã, com a minha mulher, ao funeral, ambos atordoados e indignados com o brutal cinismo do Inverno.

8.           A Carla é (para sempre) uma menina muito linda, com aquele sorriso de luz. Ainda que me chamem doido, não saio desse Presente.

 
Ribeira de Pena, 04 de Novembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 11-11-2015.]

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