Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (15)

O direito à rotina

Por acidente de amor, coube-me em sorte desposar uma madeirense, de tal resultando que, ao longo dos anos, curti parte das férias estivais na maravilhosa cidade (antes, vila) de Machico. Quando lá, gosto de não ter automóvel a meu cuidado e de, feliz pedestre entre pedestres, acordar cedo, seguir com vagar até ao quiosque fronteiro à praia e comprar jornais, escolher uma mesa ao canto da pastelaria mais à mão para café e queijada, beber-comer-ler sem pressa, seguir depois para a praia, estender a praia sobre o calhau vulcânico, saborear o Sol, mergulhar, antes do corpo, os olhos no oceano, esperar que a mulher e a filha cheguem, conversar sobre os nadas e os tudos da vidinha e da Vida, almoçar baratamente, passear a digestão pelo largo da igreja, regressar à praia, dormir embalado pela canção das ondas e da vozearia humana que haja à volta, revisitar a frescura do mar - e enfim regressar à casa da família insular, passando de caminho, talvez, pelo hipermercado para comprar pão, fruta e peixe.
Nos primeiros tempos, o meu sogro afligia-se com esta minha rotina, temendo que se tratasse de um grande aborrecimento. Se calhava cruzar-se comigo, desculpava-se e prometia que, no fim-de-semana, se ele tivesse tempo, iríamos fazer algo de diferente (uma viagem ao norte da ilha, um almoço em certo restaurante do Caniçal, etc.). Acho que nunca verdadeiramente acreditou em mim quando lhe dizia, com absoluta sinceridade, que eu amava aquela repetição voluntária dos dias, que via como consubstanciação da querida tranquilidade e do pleno senhorio do Tempo.
Lembrei-me desse amor pela rotina logo que a televisão deu conta da carnificina ocorrida em Paris. Creio que a magnitude dessa estratégia se mede, para além do número assustador das vítimas mortais e dos feridos, também pela interrupção, quiçá para sempre, da normalidade. Ir ao Café lanchar ou comprar pão, ir ao cinema, ir à discoteca, ir a um museu, ir ao futebol, namorar num jardim público ou nos corredores de um centro comercial – tenderão a passar a situações perigosas (e, no limite da previsível paranóia, a evitar). No último domingo, suspendi a leitura do jornal, no Café, por ter visto sentar-se, em mesa próxima, certo desconhecido transportando uma mochila…
A Liberdade, como a vejo, tem essa concretude das manifestações da minha humanidade mais simples. O terrorismo é, em primeiro lugar, inimigo da Paz, naturalmente. Mas também, pobres de nós, da amável rotina que era, há tão pouco tempo, um inquestionável direito das pessoas de bem.

Ribeira de Pena, 16 de Novembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho

[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 19-11-2015.]

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