O
direito à rotina
Por
acidente de amor, coube-me em sorte desposar uma madeirense, de tal resultando
que, ao longo dos anos, curti parte das férias estivais na maravilhosa cidade
(antes, vila) de Machico. Quando lá, gosto de não ter automóvel a meu cuidado e
de, feliz pedestre entre pedestres, acordar cedo, seguir com vagar até ao
quiosque fronteiro à praia e comprar jornais, escolher uma mesa ao canto da
pastelaria mais à mão para café e queijada, beber-comer-ler sem pressa, seguir
depois para a praia, estender a praia sobre o calhau vulcânico, saborear o Sol,
mergulhar, antes do corpo, os olhos no oceano, esperar que a mulher e a filha
cheguem, conversar sobre os nadas e os tudos da vidinha e da Vida, almoçar baratamente,
passear a digestão pelo largo da igreja, regressar à praia, dormir embalado
pela canção das ondas e da vozearia humana que haja à volta, revisitar a
frescura do mar - e enfim regressar à casa da família insular, passando de
caminho, talvez, pelo hipermercado para comprar pão, fruta e peixe.
Nos
primeiros tempos, o meu sogro afligia-se com esta minha rotina, temendo que se
tratasse de um grande aborrecimento. Se calhava cruzar-se comigo, desculpava-se
e prometia que, no fim-de-semana, se ele tivesse tempo, iríamos fazer algo de
diferente (uma viagem ao norte da ilha, um almoço em certo restaurante do
Caniçal, etc.). Acho que nunca
verdadeiramente acreditou em mim quando lhe dizia, com absoluta sinceridade,
que eu amava aquela repetição voluntária dos dias, que via como
consubstanciação da querida tranquilidade e do pleno senhorio do Tempo.
Lembrei-me
desse amor pela rotina logo que a televisão deu conta da carnificina ocorrida
em Paris. Creio que a magnitude dessa estratégia se mede, para além do número
assustador das vítimas mortais e dos feridos, também pela interrupção, quiçá
para sempre, da normalidade. Ir ao Café lanchar ou comprar pão, ir ao cinema,
ir à discoteca, ir a um museu, ir ao futebol, namorar num jardim público ou nos
corredores de um centro comercial – tenderão a passar a situações perigosas (e,
no limite da previsível paranóia, a evitar). No último domingo, suspendi a
leitura do jornal, no Café, por ter visto sentar-se, em mesa próxima, certo
desconhecido transportando uma mochila…
A
Liberdade, como a vejo, tem essa concretude das manifestações da minha
humanidade mais simples. O terrorismo é, em primeiro lugar, inimigo da Paz,
naturalmente. Mas também, pobres de nós, da amável rotina que era, há tão pouco
tempo, um inquestionável direito das pessoas de bem.
Ribeira
de Pena, 16 de Novembro de 2015.
Joaquim
Jorge Carvalho
[Esta
crónica foi publicada no semanário O
Ribatejo, edição de 19-11-2015.]
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