Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sábado, 19 de dezembro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (19)


O duro desejo de durar


Há pouco tempo, um médico alertou-me, com cara de poucos amigos, para a iminência de algum ataque cardíaco. Mal me olhava, tão escandalosos lhe pareciam os valores da diabetes e do colesterol que lia nos exames. Rematou o aviso com medicação, ordem para novo estilo de vida e requisição de novas análises. Saí do consultório assustado como um empregado bancário que, por pouco, houvesse sobrevivido a um assalto.
Eu dou-me bem com a mortalidade, enquanto conceito, mas custa-me muito a concretude da morte propriamente dita. Com insuspeitada autodisciplina, abracei uma cínica dieta que, entre outras violências, compreendeu a abolição dos doces e sumos, a redução do número de pães consumidos por dia, a limitação dos hidratos de carbono, o respeito espartano pelos horários das refeições. Mais: obriguei-me a um exercício físico regular e quase diário, apesar do frio e da chuva frequentes neste cantinho transmontano onde resido. O sumário de tudo quanto aqui digo é simples: não quero (ainda) morrer.
Deu-se entretanto o caso de uma moça muito jovem, que conheci desde a sua infância, ter sido assassinada por um cancro. E de um rapaz de 18 anos, que ainda há pouco se cruzava comigo nos corredores da escola, se ter suicidado por (disseram-me) desgosto de amor. E de haver esta epidemia de os pais e as mães dos meus contemporâneos estarem a partir. O mais paradoxal é, em cada funeral, ouvirmos o consabido estribilho: “É a vida.”
Um grande poeta romeno, Paul Célan, escreveu um magnífico verso sobre esta assombração que me acompanha, desde a meninice, perante o mistério e a indignidade da morte: “le dur désir de durer” (o duro desejo de durar). No embalo desta aliteração, ecoa a contradição milenar da condição humana – permanentemente projectada sobre o futuro, mas consciente da sua inevitável finitude.
Há dias, vi um episódio muito interessante de “Odisseia no espaço”, com apresentação do físico Neil deGrasse Tyson, sobre a história de Gilgamesh, rei da Suméria (quase 3.000 anos AC). O narrador descrevia, com pormenor e imaginação, as conquistas desse herói mais ou menos lendário, sublinhando a sua demencial pulsão: descobrir o segredo da imortalidade. Acontece que a história desta personagem foi descoberta num épico mesopotâmico, escrito em tábuas com caracteres cuneiformes, exactamente com o título de Epopeia de Gilgamesh. Isto é, a imortalidade – ou algo parecido – talvez estivesse (talvez esteja) na palavra escrita.
Já não é mau. 

Ribeira de Pena, 12 de Dezembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 15-12-2015.]

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