5, talvez 6 sentidos
Almeida Garrett, que decorosamente convertia
a sua libido em versos com flores e filosofia, versou o tema dos cinco sentidos
aí por 1853. Num poema de Folhas Caídas,
percebemos que a experiência sensorial do sujeito poético é fatal ponto de
partida para a evocação e a presentificação da mulher amada.
Lembrei-me deste fenómeno ao passar pela
porta de uma casa transmontana, logo pela manhã. Cheirava a café com leite. De
imediato, saiu um jacto do meu coração em direcção à infância: a minha Mãe na
cozinha preparando o pequeno-almoço, assim o odor quente de leite e café
invadindo os quartos como uma carícia. Viaja-se pelo cheiro, portanto. Alguns
perfumes devolvem-nos namoros que eram para ser eternos, ou então simples
enlevos secretos e, não vos digo mais nada, proibidos. (Tive uma colega que, ao
cheiro da bosta pecuária, se lembrava do querido lar paterno, fenómeno
decorrente de a família criar gado e produzir leite para venda.)
Acontece-me o mesmo com alguns sons: a chuva
no telhado que, coitadinha, se veio a tornar clichê de maus escribas, é quase sempre
uma querida música com refrão familiar. E há algumas canções que logo nos tiram
a poeira da idade e do cinismo, tornando-nos por segundos novamente românticos.
Também se viaja pelo paladar, claro. Já me
sucedeu voltar à amada praia de Mira, ao tempo em que (como diria o senhor
Pessoa) ninguém estava morto, apenas pela degustação de caranguejos ou de
carapaus fritos.
E o tacto? A minha Mãe, que nunca leu
Garrett, guardou certo cobertor que o mais novo da prole exigia, quando muito
infante, para dormir. Porque, sabei, a textura do têxtil é hoje passaporte
mágico para aquele tempo da absoluta inocência e felicidade.
Sobre a visão, nem valeria a pena escrever,
tão desmesurado é o poder de, pelo olhar, sabermos quase tudo dos ganhos e das
perdas da nossa existência: o meu sobrinho-neto gritando à roda da mesa
natalina e a cadeira do meu amigo Conceição muito vazia do seu bigode trocista.
Um, dois, três, quatro, cinco sentidos. Não
rima, mas é mesmo, creio eu, a conta que Deus fez. Há quem fale de um sexto
sentido, normalmente associado às mulheres. Talvez seja verdade. A senhora D.
Lurdes, uma querida vizinha nossa, deu conta às filhas, há um ano, de ter
sentido, em certa (exacta) hora do dia, uma angústia nunca antes experimentada:
era – disse - decerto o marido, internado no hospital por essa altura, a
despedir-se do mundo. E, com efeito, o senhor Luís Monteiro, nesse instante,
separara-se de nós para sempre.
Coimbra, 30 de Novembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 04-12-2015.]
Sem comentários:
Enviar um comentário