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Número de Ondas

sexta-feira, 24 de junho de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (44)


Revelação do Europeu

Há 40 anos, ao entardecer, quem estivesse atento ao movimento de peões juvenis, ali nas imediações da fábrica da cerveja, em Coimbra, quase à entrada de um lugar chamado Pedrulha, teria visto a equipa do Casal Ferrão, cheia de nervos e de esperança, a dirigir-se para o campinho do Loreto, logo a seguir à cancela da passagem de nível. O mais velho de nós tinha 14 anos, o mais novo andaria pelos 9. Éramos sportinguistas ou benfiquistas, ainda mal se falava do F.C. Porto (embora os azuis & brancos tivessem ficado em 2.º lugar no campeonato, logo atrás do Benfica e à frente do Sporting e do Boavista). Nesse ano, o Bayern de Munique sagrou-se vencedor da taça dos clubes campeões europeus (ganhou por 4-0 ao Atlético de Madrid) e a selecção da – já falecida – Checoslováquia deveio campeã europeia de futebol.
Quando chegámos ao Loreto, já os outros estavam a jogar ruidosamente entre si. Calaram-se quando nos viram e percebemos, nos rostos fechados de súbito, aquele brilho de ferocidade que é costume apreciarmos nas feras do National Geographic. Fez de árbitro um jovem adulto do bairro deles, que usava um buço desesperado e coxeava desde a nascença.
O início do jogo custou-me muito, pois eu sentia excessivamente o peso da responsabilidade, e tamanha era a tremideira que, nos primeiros minutos, as pernas não me obedeciam e os meus companheiros de equipa, por diversas vezes, tiveram de dirigir-me instruções técnico-tácticas misturadas com insultos à minha mãe.
Ganhámos (talvez por 10-9). O jogo só acabou noite adentro, porque os do Loreto não queriam que terminasse sem, antes, conseguirem a vantagem. Regressámos ao Casal Ferrão a grande velocidade, corridos à pedrada – e até o árbitro, que só discretamente nos roubara durante a partida, se associou à violência.
Em casa, as mães vociferaram pelo atraso e o suor dos filhos, o pai do Luís confiscou-lhe a bola (alegadamente para sempre) e o Matos garantiu que, quando eles viessem jogar ao nosso campo, levariam porrada de criar bicho.
 Depois, passou-se muita coisa e, por respeito à paciência leitora, apenas direi que aqui estou, no ano da graça de 2016, sentadinho à frente da televisão, no Café da vila, a ouvir o hino de Portugal, pronto para 90 minutos decisivos. Sinto o mesmo nervosismo do rapazito do Casal Ferrão que, face à responsabilidade do momento, tem o vertiginoso medo de falhar, ainda por cima contra os gajos do Loreto (ou da Áustria, ou da Islândia, ou da Hungria).
Passa-se tudo no mesmo lugar, que é o meu coração.

Ribeira de Pena, 20 de Junho de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho

[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 23-06-2016.]

2 comentários:

Paulo Pinto disse...

Li e reli e voltei a reler este teu texto, que poria de olhos fechados no restrito grupo dos mais belos e (como hei-de dizer?) completos que já vi. Muitos escrevem bonitas páginas sobre outros temas, mas quantos se dignarão elevar um jogo de putos a este nível literário e filosófico? Poucos destes putos suados se tornam escritores, e os que se tornam não costumam fazer das suas pulsões de pré-adolescente um tema literário. Tu fizeste-o de uma maneira (para mim) arrebatadora. Grande golo, JJ!

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Obrigado, grande Paulo, pela tua amizade e generosidade. São - ambas - um privilégio. Abraço!