Revelação do Europeu
Há 40 anos, ao entardecer, quem
estivesse atento ao movimento de peões juvenis, ali nas imediações da fábrica
da cerveja, em Coimbra, quase à entrada de um lugar chamado Pedrulha, teria visto
a equipa do Casal Ferrão, cheia de nervos e de esperança, a dirigir-se para o
campinho do Loreto, logo a seguir à cancela da passagem de nível. O mais velho
de nós tinha 14 anos, o mais novo andaria pelos 9. Éramos sportinguistas ou
benfiquistas, ainda mal se falava do F.C. Porto (embora os azuis & brancos
tivessem ficado em 2.º lugar no campeonato, logo atrás do Benfica e à frente do
Sporting e do Boavista). Nesse ano, o Bayern de Munique sagrou-se vencedor da
taça dos clubes campeões europeus (ganhou por 4-0 ao Atlético de Madrid) e a
selecção da – já falecida – Checoslováquia deveio campeã europeia de futebol.
Quando chegámos ao Loreto, já os outros
estavam a jogar ruidosamente entre si. Calaram-se quando nos viram e
percebemos, nos rostos fechados de súbito, aquele brilho de ferocidade que é
costume apreciarmos nas feras do National
Geographic. Fez de árbitro um jovem adulto do bairro deles, que usava um
buço desesperado e coxeava desde a nascença.
O início do jogo custou-me muito, pois
eu sentia excessivamente o peso da responsabilidade, e tamanha era a tremideira
que, nos primeiros minutos, as pernas não me obedeciam e os meus companheiros
de equipa, por diversas vezes, tiveram de dirigir-me instruções
técnico-tácticas misturadas com insultos à minha mãe.
Ganhámos (talvez por 10-9). O jogo só
acabou noite adentro, porque os do Loreto não queriam que terminasse sem,
antes, conseguirem a vantagem. Regressámos ao Casal Ferrão a grande velocidade,
corridos à pedrada – e até o árbitro, que só discretamente nos roubara durante
a partida, se associou à violência.
Em casa, as mães vociferaram pelo
atraso e o suor dos filhos, o pai do Luís confiscou-lhe a bola (alegadamente
para sempre) e o Matos garantiu que, quando eles viessem jogar ao nosso campo,
levariam porrada de criar bicho.
Depois, passou-se muita coisa e, por respeito
à paciência leitora, apenas direi que aqui estou, no ano da graça de 2016,
sentadinho à frente da televisão, no Café da vila, a ouvir o hino de Portugal,
pronto para 90 minutos decisivos. Sinto o mesmo nervosismo do rapazito do Casal
Ferrão que, face à responsabilidade do momento, tem o vertiginoso medo de
falhar, ainda por cima contra os gajos do Loreto (ou da Áustria, ou da
Islândia, ou da Hungria).
Passa-se tudo no mesmo lugar, que é o
meu coração.
Ribeira de Pena, 20 de Junho de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no
semanário O Ribatejo, edição de
23-06-2016.]
2 comentários:
Li e reli e voltei a reler este teu texto, que poria de olhos fechados no restrito grupo dos mais belos e (como hei-de dizer?) completos que já vi. Muitos escrevem bonitas páginas sobre outros temas, mas quantos se dignarão elevar um jogo de putos a este nível literário e filosófico? Poucos destes putos suados se tornam escritores, e os que se tornam não costumam fazer das suas pulsões de pré-adolescente um tema literário. Tu fizeste-o de uma maneira (para mim) arrebatadora. Grande golo, JJ!
Obrigado, grande Paulo, pela tua amizade e generosidade. São - ambas - um privilégio. Abraço!
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