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Número de Ondas

sexta-feira, 17 de junho de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (43)



Primário, primeiro

Devim professor, mas poderia ter devindo outra profissão qualquer e, no essencial, ser a mesmíssima pessoa que aconteci: advogado, merceeiro, jornalista, motorista de táxi ou de camiões, médico, treinador de futebol, empregado de escritório, carteiro.
Dito isto, ainda bem que, de conluio com o destino, me fiz professor. Acabei a leccionar o 3.º ciclo e o secundário, sem dramas e sem grandes entusiasmos. Houve um momento em que desejei a carreira de docente universitário, confesso, ainda tocado pelo misterioso encanto dos professores e das professoras da minha faculdade de Letras, esses prováveis compinchas de Eça, Camões, Garrett, Júlio Dinis, Camilo, Hugo, Balzac, Stendhal, Flaubert, Boris Vian, Rimbaud, Maupassant, Shakespeare, Twain, Faulkner, Steinbeck. Ainda concorri – e cheguei até a obter a graça de uma selecção (que recusei, quiçá avisadamente, por motivos de mercearia e de amores familiares). Esclareço: nunca vi o ensino básico e o secundário como um prémio de consolação. Ao contrário, senti-me abençoado, desde o primeiro minuto, com a oportunidade de ganhar a vida no contexto (no aconchego) de duas paixões primordiais: a língua e a literatura. Juntou-se-lhes uma terceira, que já intuíra, mas ainda faltava confirmar: a paixão de ensinar.
Sei hoje, com mais de trinta anos de experiência ininterrupta, não obstante os coices de governos, partidos políticos, associações disto & daquilo, ignorantes e mediáticos canalhas, que encontrei a profissão certa.
Sou um verdadeiro contemporâneo do maiúsculo Tempo: lido com o passado (tesouro de autores e obras que já eram - éramos - nós antes de nós existirmos); participo no presente; ajudo a fabricar o futuro. Já nem sequer estou professor, como costumava dizer; sou professor.
Decerto voltaria a fazer tudo de novo, creio, na eventualidade de regressar aos meus anos de universidade. Com uma diferença: ter-me-ia feito professor primário (ou do 1.º ciclo, como agora se diz). Tenho percebido que muito do porvir académico e pessoal de toda a gente passa por aí. E que o docente dos primeiros anos pode, talvez mais do que qualquer outro profissional da educação, fazer a diferença.
No romance A Morgadinha dos Canaviais, o sensatíssimo Júlio Dinis escreveu: “[Ao] professor de instrução primária (…), raro é que [as inteligências que educa] volvam um olhar agradecido para as humildes mãos, que as sustentaram, quando ainda não tinham asas para voar. // Quase todos os grandes homens cometem esta ingratidão. Falam nos seus mestres de filosofia, de matemática, de literatura, e não salvam do esquecimento, pronunciando-o, o nome do primeiro mestre, do que os ensinou a ler.”
Eu venho aqui ao jornal O Ribatejo tirar o chapéu aos grandes professores primários de todos os tempos. É, bem sei, homenagem singela e pouca, mas é do coração.

Coimbra, 09-06-2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 15-06-2016.]

2 comentários:

Paulo Pinto disse...

O teu texto, além de belíssimo, não deixa indiferente nenhum professor. Os que não se conseguirem identificar contigo lamentá-lo-ão e invejar-te-ão. Os que não são professores e estão bem na vida devem rir-se entre dentes; se forem da zona do Porto chamar-te-ão «morcão» ou «pascácio». Não ligues, enquanto se riem vão tirando macacos do nariz. É justíssimo esse teu louvor aos professores que nos guiam e instruem nos primeiros anos, pois são sem dúvida os que mais influenciam o nosso percurso posterior, e é certo que à medida que os miúdos crescem a sua memória da infância vai-se esvaindo e esses começos parecem tão básicos, tão pueris, que são muito desvalorizados. E parece-me que, à medida que a escolaridade se prolonga, menos valor ainda se dá a esses humildes (mas às vezes brilhantes) mestres da primária. Quanto a ti, provavelmente do que gostarias mesmo era de ser professor de todos os níveis, do pré-escolar à Faculdade de Letras. Seria interessante estudar comparativamente, com alguma profundidade, os prós e os contras de cada nível. Dado que não há provas irrefutáveis da inexistência da reincarnação, seria talvez pertinente ires começando a dedicar-te a um estudo desse tipo, que te poderá ainda ser útil. Que tal? Fica a sugestão... Um abraço!

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Abraço completamente cúmplice, campeão!

JJC