Prova de vida
O
cérebro humano é caprichoso e gosta de pregar partidas. O meu, em contramão
temática com o Sol maravilhoso destes dias, deu em trazer-me lapsos
cinematográficos de gente traiçoeiramente falecida. Ora me aparece o meu Pai olhando
pelos meus olhos para o trote gracioso de uma turista em Coimbra; ora é o meu
cunhado Zé Manel ironicamente sorrindo pela minha boca enquanto um conhecido
comum fala de grandes conquistas e de mundiais projectos; ora é o meu amigo
Conceição acenando com a minha mão a um velhote divertido do nosso bairro; ora
é o meu sogro, Mestre João, falando pelas minhas palavras sobre a complexidade,
a singularidade e a infinita riqueza da condição humana, homens e mulheres sofrendo-temendo-tremendo-desistindo-resistindo-sonhando-sendo
(nem sempre por esta ordem).
Não
por acaso, creio, ouvi falar, em conversa recente, da questão de os idosos
terem de, regularmente, fazer “prova de vida” ao Estado. A obrigação previne
ilegalidades e abusos: o benefício, sob a forma de pensão ou reforma, só é
válido enquanto o beneficiário estiver vivo (e, acrescento eu, enquanto a
direita não volta ao poder).
Da
conversa ficou-me essa extraordinária expressão: “prova de vida”. Quando me
lembro de quem fez parte da minha existência - gente muitíssimo vizinha dos meus
dias mais verdadeiros - e partiu, que outro modo haverá para nomear esse
fenómeno de, não obstante a morte, eu continuar a sentir a sua companhia?
O
meu cérebro, que é a verdadeira Casa desses gigantes míticos a que chamamos
Memória, Alma, Consciência, teima em salvar do Fim quem me é consubstancial. Sonho
com eles, lembro-me deles, falo deles, escrevo sobre eles – e isto são provas de vida, se me dão licença.
A
conclusão não é bem que não há morte. É sobretudo que o amor dá bastante luta
ao apagamento. Falo por mim. Como vos digo, estou sempre a recordar-me da minha
gente amada e nunca deixa de se dar este milagre: enquanto não morro, os que
partiram – acreditai se fordes capazes - não morrem.
Vila Real, 04 de Junho
de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi
publicada no semanário O Ribatejo,
edição de 09 de Junho de 2016.]
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