Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sábado, 11 de junho de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (42)

Prova de vida

O cérebro humano é caprichoso e gosta de pregar partidas. O meu, em contramão temática com o Sol maravilhoso destes dias, deu em trazer-me lapsos cinematográficos de gente traiçoeiramente falecida. Ora me aparece o meu Pai olhando pelos meus olhos para o trote gracioso de uma turista em Coimbra; ora é o meu cunhado Zé Manel ironicamente sorrindo pela minha boca enquanto um conhecido comum fala de grandes conquistas e de mundiais projectos; ora é o meu amigo Conceição acenando com a minha mão a um velhote divertido do nosso bairro; ora é o meu sogro, Mestre João, falando pelas minhas palavras sobre a complexidade, a singularidade e a infinita riqueza da condição humana, homens e mulheres sofrendo-temendo-tremendo-desistindo-resistindo-sonhando-sendo (nem sempre por esta ordem).
Não por acaso, creio, ouvi falar, em conversa recente, da questão de os idosos terem de, regularmente, fazer “prova de vida” ao Estado. A obrigação previne ilegalidades e abusos: o benefício, sob a forma de pensão ou reforma, só é válido enquanto o beneficiário estiver vivo (e, acrescento eu, enquanto a direita não volta ao poder).
Da conversa ficou-me essa extraordinária expressão: “prova de vida”. Quando me lembro de quem fez parte da minha existência - gente muitíssimo vizinha dos meus dias mais verdadeiros - e partiu, que outro modo haverá para nomear esse fenómeno de, não obstante a morte, eu continuar a sentir a sua companhia?
O meu cérebro, que é a verdadeira Casa desses gigantes míticos a que chamamos Memória, Alma, Consciência, teima em salvar do Fim quem me é consubstancial. Sonho com eles, lembro-me deles, falo deles, escrevo sobre eles – e isto são provas de vida, se me dão licença.
A conclusão não é bem que não há morte. É sobretudo que o amor dá bastante luta ao apagamento. Falo por mim. Como vos digo, estou sempre a recordar-me da minha gente amada e nunca deixa de se dar este milagre: enquanto não morro, os que partiram – acreditai se fordes capazes - não morrem.

Vila Real, 04 de Junho de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho

[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 09 de Junho de 2016.]

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