Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Sob o signo da amabilidade


O meu livro Júlio Dinis - As Pupilas do Senhor Escritor (versão - um pouco mais leve - da minha dissertação de Doutoramento em Literatura Portuguesa - Investigação e Ensino) foi apresentado em Ribeira de Pena, no passado dia 01 de Junho de 2016, durante a Feira do Livro do município. Tive a honra e a felicidade de reunir muitos amigos nesta ocasião (e alguns vieram de muito longe). Agradeço-lhes! Agradeço também à Câmara Municipal o apoio dado à edição e, muito particularmente, agradeço à minha distintíssima colega Inês Castro Silva, que fez uma maravilhosa apresentação da obra. 
Aqui inscrevo algumas notas sobre esta professora e investigadora.
Inês Maria de Castro Domingues Silva é licenciada em Ensino de Português pela Universidade do Minho, desde 1998. É Mestre em Mestre em Teoria da Literatura e Literatura Portuguesa, pela Universidade do Minho, desde 2002, sendo autora de uma dissertação intitulada “AD USUM DELPHINI NON EST. Exercício Crítico Sobre O Delfim de José Cardoso Pires”. É Doutorada em Teoria da Literatura e Literatura Comparada, pela Universidade de Santiago de Compostela, desde 2011, tendo escrito uma dissertação intitulada “DA CONTRAFACÇÃO DA REPRESENTAÇÃO À (IM)POSSIBILIDADE DOS GÉNEROS. Territórios autorais: problemática do desencontro com as práticas de recepção na literatura e no cinema”. É actualmente professora de Português no Agrupamento de Escolas de Ribeira de Pena. Enquanto formadora, tem dinamizado várias acções de formação no âmbito do ensino da Língua e da Literatura. É assessora do Centro de Formação de Basto. Ao longo dos anos, tem desenvolvido vários Projectos de promoção da leitura (de que se destaca o “Pelo livro é que vamos”) e de Clubes de formação/expressão artística (destacando-se o Clube LerArtes, que desenvolveu em Cerva).

Com sua licença, publico no "muito Mar" o texto que a Inês elaborou para aquele momento.









 

SOB O SIGNO DA AMABILIDADE

Apresentar um livro do Joaquim Jorge Carvalho – além de uma responsabilidade, pelo valor de excelência que, na primeira pessoa, posso atestar, pelo estatuto que lhe confere o reconhecimento na esfera escolar (há uma legião de alunos e professores que são seus “fãs” confessos) e, especialmente, na comunidade ribeirapenense, onde tem tido papel relevante na disseminação de ideias e acções de e em prol da cultura, numa lógica polinizadora muito interessante (quantas vezes eu ouvi “o professor Joaquim Jorge… fez…. disse… ensinou-me…) – é, indubitavelmente, um prazer, que tem muito que ver, curiosamente, com um traço que valoriza na literatura de Júlio Dinis: a amabilidade.
Pois é, de todas as muitas coisas abonatórias que poderia dizer sobre a personalidade do Doutor Joaquim Jorge Carvalho, do seu brilhantismo académico, à qualidade manifesta enquanto professor, sem esquecer o seu percurso já feito de escritor, escolho salientar a amabilidade que irradia em todas estas dimensões, articulando essa característica jorgiana com a ênfase dada neste livro a essa feição da obra dinisiana. Só um investigador “amável”, no momento de escolher o tema da sua tese, teria a sensibilidade de pensar a amabilidade da literatura de Júlio Dinis como expressão de uma visão do mundo com bastas potencialidades para preencher algum vazio literário no panorama escolar. 
Já lá iremos, ao vazio e à proposta de um caminho de sentido avançado neste livro, entretanto importa ainda dizer que é igualmente gratificante falar de Júlio Dinis, porque sou da geração dos que o leram e guardo muito boas memórias da sua obra, de que elejo, dos nove que volumes que marcam a verde e dourado a estante (e há também qualquer coisa de nostálgico nestas capas), um top four (embora pudesse ser top five): As Pupilas do Senhor Reitor, A Morgadinha dos Canaviais, Uma Família Inglesa e Os Fidalgos da Casa Mourisca. Vivi uma adolescência iluminada por essa "amabilidade” que o Joaquim Jorge identifica como elemento positivamente diferenciador, porta aberta para um mundo entre o bucólico que ainda reconhecia da minha ruralidade e o ideal de uma humanidade onde os defeitos eram apenas temporários, obstáculos de ser a ultrapassar, “pecadilhos” da insensatez de uma juventude a crescer sem saber por onde, mais remidos por um processo de consciencialização individual do que punidos por uma moral reguladora externa (seja ela religiosa ou social).
E isto leva-nos à tese, plasmada no livro que agora publica, de que essas idiossincrasias da obra de Júlio Dinis corporizam uma ambivalência necessária a um cânone literário escolar, na medida em que: 
- por um lado, tem qualidade literária, fundamental para desenvolver competências essenciais de literacia, até porque enformada numa tessitura discursiva facilitadora, pela forma consistente como desenvolve a narrativa, capaz de envolver e estimular os alunos; 
- por outro lado, apresenta uma moldura ético-poética potenciadora de um sentido reflexivo de impacto na esfera dos valores, transbordante relativamente ao universo das aprendizagens estritamente académicas, mas essencial na formação de jovens adolescentes em projecto de adultos futuros. 
Relativamente ao primeiro desses dois vectores, e regressando à incipiência da substância literária escolar, de facto fomos assistindo – à medida que a escola se ia abrindo necessária e democraticamente à globalidade da população, evolução imposta pela obrigatoriedade que é primeiro que tudo um direito – a uma massificação da escolarização que corresponde, afinal, a apenas meio direito, porquanto falha a também obrigação da qualidade dessa escolarização. Neste cenário do “sim mas não”, um dos aspectos que manifestamente tem feito emperrar a proficuidade das aprendizagens, como bem aponta Joaquim Jorge, sem dúvida que se prende com a erosão do corpus literário dos ensinos básico e secundários, obrigado a travar um combate pelo seu direito de cidadania privilegiada no espaço das aprendizagens escolares. 
E um dos discursos mais nocivos, que a tese sublinha e de que nós próprios, professores, somos culpados, é o da teoria da pretensa adequação: aos “novos tempos” (como se todo o ensino de repente tivesse que rimar com “fixe”, “bué” e “like”), aos perfis dos alunos (heterogéneos, porventura dispersos por uma parafernália de estímulos, não quer dizer que acéfalos); adequação, enfim, a um suposto sucesso (qual?, é que há vários e nem todos válidos). Esta é uma falácia terrível que, efectivamente, foi invadindo os programas, aos ziguezagues das agendas políticas, os manuais e, finalmente, a mente e a prática dos professores. O adequado pode ser bom, não tem de ser paupérrimo, nem tem de se submeter a uma lógica de progressivo estreitamento do espaço do texto literário (que será sempre palco principal das aprendizagens da disciplina de Português), e o investigador/professor evidencia isso com toda a mestria que lhe conhecemos. 
Júlio Dinis, percebemos, não decorre apenas de uma empatia antiga de leitor afeiçoado, ainda que exista essa cumplicidade confessa; este autor foi eleito para análise como foco-exemplo do texto “adequado” que pode e deve ser “bom”, a ser capital cultural acrescentado, que é para isso que escola serve na vida dos alunos e da sociedade. E fá-lo levando-nos, qual exímio cicerone, a percorrer os caminhos da literatura dinisiana para que descubramos (ou redescubramos) as virtualidades de um género, aqui tão perceptível na “transparência” significante daquilo a que costumo chamar de peças essenciais deste tipo específico de máquina semiótica (a narrativa): as personagens (tantas e inesquecíveis, as principais e as secundárias que se tornaram realmente protagonistas na nossa memória, num todo figurativo da alma humana, com os pares românticos como Margarida/Daniel, Madalena/Augusto, Carlos/Cecília a conquistaram-nos no plano da emoção; mas também com personagens como João Semana, que nos faz ainda sorrir, pelo menos a cada vez que que vamos ao oftalmologista) e a acção, na sua formulação de intriga simples que, porém, nos suspende; ou na cena que se abre em teatralização do acontecer do quotidiano social. 
Neste tour guiado, convida-nos Joaquim Jorge a atentar no manejamento de um dispositivo narrativo gerador de sentidos, não para patentear a sua douta sapiência do universo literário e da respectiva metalinguagem, mas sim para comprovar a natureza ensinável e aprendível de um género assim tão lapidarmente trabalhado, burilado com saber e com intenção, constituindo-se funcionalmente como modelo de leitura operativo de efeito difusor das competências interpretativas. Estas são “ferramentas” ao serviço da aprendizagem de mecanismos de leitura são, sem dúvida, preciosas. O autor da tese assim o afirma, eu subscrevo.
Depois, valorizando concomitantemente a dimensão ético-poética como linha exploratória de pertinência escolar, versa, uma outra parte da análise produzida, sobre esse princípio da inocência que domina a narrativa dinisiana, espécie de manifesto da crença no humano e na sociedade como moldura harmónica possível, de encontro mais do que desencontro, onde até o fosso das desigualdades de classe (protagonizado pelos pares românticos) se dirime numa democrática ascensão social pelo caminho da educação, estratégia de upgrade social que viabiliza a felicidade; e onde todo o mal é erradicável porque passível de “tratamento” pelos valores humanos. 
Ora, como muito bem ressalta Joaquim Jorge, num contexto em que nos queixamos da desvalorização do papel da escola, assim como de comportamentos indisciplinados que obstaculizam o processo de ensino/aprendizagem, seria igualmente interessante aproveitar esta visão moralizante e, sobretudo, optimista para resgatar os alunos da falência de um sentido do percurso escolar, desconstruir perfis discentes problemáticos, desfocando-os de um real em certo sentido rarefeito ao mesmo tempo que brutalizante e convidando-os a entrar na esfera de uma ingénua inocência que é mundo paralelo ficcional, sim, mas que pode ser, como foi noutros enquadramentos epocais, um portal de evasão e redenção de um real demasiado real. 
Numa reunião recente ouvi alguém e outros acenarem que sim com a cabeça: hoje, tudo no ensino tem de passar pela tecnologia ou falhará. Não gosto nada de pensar que a literatura ou quaisquer outros conhecimentos e artes já não valem por si, independentemente do suporte, e que vivemos sob a ditadura da tecnologia; mas dirão alguns que esta puerilidade tocante da obra de Júlio Dinis se apresenta anacrónica face à experiência da contemporaneidade, e por isso não será “adequada”; todavia, como defende esta tese, se bem a entendi, talvez esteja na altura de o cânone escolar “arriscar” ser “desadequada” na medida em que diferente do universo de referências dos alunos, visto ser suposto fomentar o alargamento dos horizontes experienciais e não estreitá-los à mesmice do seu território de conhecimentos. 
Insisto nesta linha da tese do Joaquim Jorge por me ser muito cara: percebo alguma irritação com este quase “tique” didático-pedagógico de “adequar”, que, a mais das vezes, não é mais do que delapidar o património literário e perder oportunidades de aprendizagem. E, curiosamente, logo que comecei a ler este seu livro me apercebi como, ironicamente, ambos percorrêramos vias diferentes, e em certa medida mesmo paradoxais (ele regressou, e bem, à limpidez dos clássicos, eu andei atrás das nebulosas e turbulências de experiências estéticas mais radicais da modernidade, pós-modernidade ou o pós-qualquer-coisa do estilhaçamento da coerência), porém com o objectivo de chegarmos a uma mesma conclusão, que já era, na verdade, pressuposto e premissa que norteava o trabalho de investigação de cada um: a obrigação da escola propiciar experiências de leitura ricas e significantes, porque lhe cabe a missão inalienável de elevar o nível de literacia dos alunos (e futuros cidadãos) para que cumpra a finalidade fundamental de sustentar a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática, na medida em que legente, e logo consciente; crítica, e portanto interpelante.   
Devo admitir que a sua proposta será bem mais sustentável em termos de eficácia pedagógica, já que em Júlio Dinis encontra a fórmula ideal da conjunção da substancialidade literária com a simplicidade do estilo e da linguagem; enquanto eu erigi, exacerbadamente, a complexidade como princípio (em detrimento da valorização da construção e da ordem de um sentido gratificante). Reconheço: não podemos partir das debilidades das competências de leitura que diagnosticamos invariavelmente nos nossos alunos para aventuras radicais sem rede. É preciso primeiro saber percorrer caminhos semióticos reconhecíveis, que encontramos, justamente, nos clássicos. Vá, depois dos alunos terem percorrido a tua proposta de caminho, talvez ainda seja possível darem pequenos passos na minha sugestão de viagem com destino incerto. 
Por isso celebro, nesta tese, a clarividência de defender esse norte, uma literatura que seja ponto cardeal orientador, e a coragem de o assumir numa altura em parece que temos de ser todos muito “hipermodernos” ou pautarmo-nos pelos incontornáveis do cânone de sempre e para sempre, mudem quantas vezes mudarem os programas. O Joaquim Jorge sai do alinhamento e sabe que sai, o risco é assumido e não o incomoda; a isto chama-se ter personalidade e convicções, coisa que vai escasseando bastante no acriticismo disfarçado de opinião sem reflexão que grassa um pouco por todo lado.
A tese, agora livro, apresenta, assim, de uma forma tão aprofundada e cientificamente fundamentada quanto clara e acessível à leitura de especialistas e não especialistas na obra de Júlio Dinis e da literatura, as inúmeras potencialidades de uma literatura um tanto esquecida na voragem contemporânea do tempo; e aponta à escola o papel que lhe cabe na abertura à pluralidade quanto à qualidade, basta termos, todos, a “amabilidade” de reivindicar e praticar essa acção transformadora. E, nesse sentido, não posso deixar de sublinhar, finalmente porque estou a chegar ao fim e porque essa face clarifica-se também mais no fecho do livro, o testemunho do professor por detrás do investigador, que dá conta de um percurso de questionamento e de participação activa na reflexão de dentro e por dentro da escola, única dinâmica capaz de gerar a mudança. 
Deixo agora ao autor do livro a crítica da minha crítica, ou melhor, a correcção de alguma incorrecção, pedindo desde já desculpa se o traí em alguma ilação abusiva da sua tese, mas devo dizer que gostei de a ler e descobrir assim, no reencontro de pontos de vista que partilhamos, no desencontro com que posso aprender. Obrigada pela partilha generosa da tua visão do que é o lugar da literatura na escola e, mais uma vez, parabéns pelo trabalho de investigação que a sustenta e pelo livro que a visibiliza, que, espero, juntamente com o teu contributo colaborativo como formador, a disseminará como semente contagiante de onde possa germinar a valorização do papel essencial da literatura no desenvolvimento pessoal e colectivo.

 Ribeira de Pena, 01-06-2016.
 Inês Castro Silva


 Ribeira de Pena, 15 de Junho de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[As fotos foram colhidas, com a devida vénia, na página da Câmara Municipal de Ribeira de Pena no Facebook.]

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