Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sábado, 4 de junho de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (40)


A lição dos lepidópteros
Chego cansado à sala de professores, respirando pesadamente, com ar (calculo eu) muito aéreo. Carrego três sacos – e é fácil divisar, entre a mercearia dos adereços, casacões do século passado, saias de rancho folclórico, duas bengalas, um chapéu de palha, duas blusas (uma delas – a minha mulher que não saiba disso – ainda nova, por estrear), um candeeiro com pé alto, duas perucas a imitar as de magistrados ingleses. Os meus alunos de teatro, por seu turno, trazem também roupa, bigodes postiços, tintas para o rosto, boinas dos avós e até uma boneca deitada num berço verdadeiro (a Soraia garantiu que o brinquedo dizia “papá, mamã”, mas sobreveio-lhe um mutismo de última hora, talvez por falta de pilhas). 
Ensaiamos à tarde, no último bloco lectivo. A ideia é apresentar o espectáculo no final do período. Andamos todos entusiasmados e receosos, em ondas mais ou menos regulares e simétricas. Eu finjo que não estou zangado com quem não sabe ainda o texto e se esquece das marcações ensaiadas. Sei, por experiência própria, que os actores (novos e velhos; amadores e profissionais) precisam de muita paciência e de muito mimo, sobretudo nas vésperas da récita. Se me arrogasse o direito de lhes gritar, ai de mim, correria o risco de eles se demitirem do projecto no mesmo instante. Aguento, portanto, as suas falhas estoicamente, corrijo-os sorrindo, felicito-os por terem melhorado (mesmo que não). 
“Este trabalho todo”, diz a Soraia, “por uma coisa que dura só uns 30 minutos!” 
Digo-lhe, uma vez mais, que tem razão. E a todos volto a falar da vida das larvas e do voo delicado e breve das borboletas. Porque a nossa viagem tem muito da biografia lepidóptera: casulos de paciência, sonhos larvares. Para voarmos, temos, antes, de rastejar humildemente pelo chão do mundo; para sermos belos e únicos, temos, antes, de preparar diligentemente o milagre da nossa própria transformação, do nosso próprio crescimento. 
Cumprimos dezenas e dezenas de horas de treino, de ensaio, de aperfeiçoamento pessoal e colectivo, de organização, de coordenação. Uma sinfonia faz-se de muitos sons, de variados instrumentos, de múltiplas notas e estilos - mas só é sinfonia se, no conjunto, se produzir obra com sentido, que traga à chã humanidade sinais do divino som que, mal o sabendo, buscamos e necessitamos. Ensaiamos, ensaiamos, ensaiamos. (Em francês, não por acaso, “ensaiar” diz-se “répéter”.)
A ironia de todo este processo está no facto de um espectáculo levar tantas horas a ser preparado e, afinal, tudo se concretizar nuns trinta-quarenta minutos de função. Depois, acaba. Acaba? Não bem. Demorará até que perdure - nos olhos, nos ouvidos, no coração das gentes – a memória emocionada de um voo lepidóptero. 
O meu clube de Teatro, senhores, é um amável casulo.

Coimbra, 23 de Maio de 2016. 
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 27-05-2016.]

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