Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (9)


O carrocel da Lídia

Esta crónica era para ser sobre as eleições do dia 4 de Outubro, mas a ideia morreu de melancolia e de sede. Desse falecimento resultou um outro texto não tão outro como isso. Com licença…
Em 1978, as festas em honra de Nossa Senhora da Piedade, num lugar mui conimbricense chamado Pedrulha, eram motivo de alegria geral – para os habitantes locais, em particular, mas também para os de lugares mais ou menos vizinhos, que ruidosamente invadiam bailes, concertos e feiras ambulantes.
Recordo aquele tempo como um banquete para os sentidos: som de sinos repicantes, de foguetes eufóricos, de bombos gordos, de música e publicidade altofaladas; odor de chanfana, de vinho, de laranjadas, de alfazema e de pólvora queimada; gosto de algodão doce e caldo verde muito quente; visão de meninas-raparigas-senhoras com vestidos tácteis, cabelos feéricos, olhos em modo de convidativos mares.
Eu vivia no Casal Ferrão, ali mesmo ao lado do lugar em festa, e tinha uma espécie de dupla nacionalidade porque o meu avô materno residia também na Pedrulha, a poucas casas do prédio do menino Daniel Abrunheiro (versão infantil do cronista genial que habitualmente lemos na última página d’O Ribatejo).
Ora, houve aquele domingo inesquecível em que o clã da família Mateus-Carvalho foi à festa. Depois do café & brandy dos adultos e dos gelados para as mulheres e crianças, seguimos para o carrocel. Logo na primeira viagem, aconteceu um acidente com a minha tia Belinha, avantajada e sanguínea mulher que era capaz das piores fúrias ou, com pequenos intervalos, das maiores manifestações de ternura e generosidade. Foi assim: após colocar os meus primitos Hugo e Pedro - de uns cinco, seis anos - sobre os animais disponíveis (talvez uma zebra e um burro), preparava-se para sair da plataforma e foi surpreendida pelo início do movimento circular. Desequilibrou-se e ficou de joelhos, agarrada, salvo erro, à zebra, barafustando, gemendo, vociferando. Ao som da música característica daquela engrenagem, víamo-la aos círculos, insultando o responsável pelo carrocel e igualmente, sempre que passava por nós (que ríamos como perdidos), a própria família. No final da corrida, lá saiu cambaleando, amuada, recusando quaisquer ajudas. A gente enxugava as lágrimas e disfarçava, como podia, as gargalhadas suspensas.
Décadas depois, a tia Belinha já é capaz de se rir também do episódio, decerto porque o (re)vê de longe, na condição tranquila de espectadora. Às vezes, é quanto basta, no carrocel da vida, para substituirmos a aflição pelo sorriso sereno e compreensivo. Como diria Pessoa em versão de Ricardo Reis, “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. / Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos…”

Coimbra, 05 de Outubro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 06-10-2015.]

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