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Número de Ondas

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (8)


Elogio da virtude

 
Na primeira aula do ano lectivo, voltei ao (celebrado) Diário, de Sebastião da Gama e falei aos meus alunos do valor da lealdade. É um vocábulo bonito, este: lealdade não tem o cariz canino-impositivo de fidelidade, tão-pouco o sentido acrítico-militar da obediência cega. Traduz, no dicionário dos dias, a confiança natural que há entre gente de bem. Quero dizer: a noção de que há acções que, por decência, praticamos, e outras que, pelo mesmo motivo, nos coibimos de praticar, em ambos os casos porque seria – digamos assim – feio e imoral fazer o inverso.

Lembro-me de, há anos, um indivíduo chamado Pina Moura, que viajou confortavelmente de comunista a socialista, e daqui a outra ideia qualquer ainda mais vantajosa, ter sido questionado sobre certo problema ético: como podia um deputado português defender, na Assembleia da República, leis que beneficiavam objectivamente os interesses de um grupo económico espanhol no negócio da energia, tendo em conta o facto de o deputado ser também, à época, em regime de acumulação, um empregado de “nuestros hermanos”? Com admirável desfaçatez, Pina Moura respondeu (cito de cor): “A minha ética é a ética republicana. Limito-me a cumprir o que está na lei.”

Ora, levado o argumento ao extremo, um cidadão da Alemanha, nos anos 30 e 40 do século XX, poderia – sem problemas de consciência – denunciar e maltratar judeus à vontade, uma vez que tais acções eram conformes às leis do Reich.

Aqui chegados, deixai que vos diga: são piores os amorais que os imorais, menos susceptíveis aqueles que estes de evitarem ou corrigirem comportamentos vis ou modos de pensar aviltantes. O imoral age contra a moral, normalmente de fugida, às escondidas (quiçá envergonhado do mal que concebe ou pratica). O amoral não (re)conhece a diferença entre bem e mal, pelo que lhe é indiferente o valor ético e a consequência moral dos seus actos. Aliás, a maior parte dos facínoras (anónimos ou célebres) são gente amoral.

Na campanha eleitoral ainda em curso, o maior ruído talvez seja, não o dos tambores e palavras de ordem pré-fabricadas, mas o da evidente hipocrisia dos políticos (com relevo, convenhamos, para Coelho e Portas quando falam, lacrimejando, dos “sacrifícios dos portugueses” e das famosas culpas alheias).

A própria hipocrisia tem uma dimensão amável, bem vistas as coisas, pois encontramos naquele que mente-finge-dissimula o pressuposto simpático de, lá no fundo, existir um certo nível de arrependimento ou remorso. Um leve resquício, direi eu, de humanidade. La Rochefoucauld, escritor francês do século XVII, cunhou formosamente esta ideia: “A hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude.”

 No final do sumário, depois de “Apresentação.”, “Natureza e objectivos da disciplina de Português.”, “Critérios de avaliação.“, “Algumas regras a observar durante o ano lectivo.”, os meus alunos escreveram: “O valor da lealdade.”
 
Coimbra, 27 de Setembro de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no jornal O Ribatejo, ed. de 01-10-2015.]

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