Realidade bem dita
Por
razões mais ou menos filosóficas e também devido a pura necessidade
linguística, tendo a servir-me da realidade para verbalizar as minhas emoções,
os meus sentimentos, as minhas ideias, os meus desejos - enfim, o meu genérico
espanto de existir. A realidade ensina-me, digamos assim, a dizer a realidade.
Pode, pois, suceder que uma árvore, a meio do caminho, tenha a forma de um
ponto de interrogação sobre os dias; que um velho e uma criança cruzem de mãos
dadas a passadeira e não se saiba que geração ajuda qual; que certo andrajoso
em frente ao pronto-a-vestir mais chique da vila seja Karl Marx ou Jesus Cristo
discursando em silêncio sobre a distribuição da riqueza; que uma rapariga fresca
espreguiçando-se felinamente, enquanto conversa com a vendedora de fruta, seja
um monumento da Beleza ou da Possibilidade. Etc.
Às
vezes, os símbolos que a realidade propõe não são tão óbvios e imediatos como,
por preguiça ou pressa, poderemos pensar. Há 19 anos, quando comecei a dar
aulas em Ribeira de Pena, dei-me conta de que, em certa sala, o horizonte
visual era nem mais nem menos que o cemitério. Lida ali, a metáfora afigurava-se-me
óbvia: tratava-se da fatal Morte no meu caminho. Mas depois houve um rapaz que
gargalhou, uma menina que se queixou, dois outros alunos que disputaram o alegre
privilégio de escrever o sumário no quadro. Isto é: vozes, movimento, Presente.
De modo que a imagem se (me) acrescentou de significado: era a Morte no meu
caminho, sim; mas havia também, entre mim e Ela, os meus alunos, as minhas
aulas, o supremo Durante que somos enquanto podemos.
Uns
anos depois, durante o jogging
habitual, entre a piscina municipal e o quartel dos bombeiros ribeirapenenses,
à passagem pelo portão de acesso ao mesmo cemitério do parágrafo anterior, fui
interpelado por um senhor vestido de negro, muito idoso: “Eh! Eh! Escute!”
Outra vez me ocorreu que aquilo era a Morte semioticamente chamando por mim.
Parei e, talvez com maus modos e voz mais sonorosa do que o normal, perguntei:
“Que se passa?” O homem mirou-me, pareceu desconcertado, desculpou-se:
confundira-me com outra pessoa. Portanto, reflecti eu, sem desistir do
simbolismo da realidade experimentada, mesmo que o Fim andasse à minha procura,
não era (ainda) a minha vez.
Ribeira de Pena, 10 de
Outubro de 2015.
[Esta crónica foi
publicada no semanário O Ribatejo,
edição de 15-10-2015.]
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