Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (10)


Realidade bem dita

 
Por razões mais ou menos filosóficas e também devido a pura necessidade linguística, tendo a servir-me da realidade para verbalizar as minhas emoções, os meus sentimentos, as minhas ideias, os meus desejos - enfim, o meu genérico espanto de existir. A realidade ensina-me, digamos assim, a dizer a realidade. Pode, pois, suceder que uma árvore, a meio do caminho, tenha a forma de um ponto de interrogação sobre os dias; que um velho e uma criança cruzem de mãos dadas a passadeira e não se saiba que geração ajuda qual; que certo andrajoso em frente ao pronto-a-vestir mais chique da vila seja Karl Marx ou Jesus Cristo discursando em silêncio sobre a distribuição da riqueza; que uma rapariga fresca espreguiçando-se felinamente, enquanto conversa com a vendedora de fruta, seja um monumento da Beleza ou da Possibilidade. Etc.

Às vezes, os símbolos que a realidade propõe não são tão óbvios e imediatos como, por preguiça ou pressa, poderemos pensar. Há 19 anos, quando comecei a dar aulas em Ribeira de Pena, dei-me conta de que, em certa sala, o horizonte visual era nem mais nem menos que o cemitério. Lida ali, a metáfora afigurava-se-me óbvia: tratava-se da fatal Morte no meu caminho. Mas depois houve um rapaz que gargalhou, uma menina que se queixou, dois outros alunos que disputaram o alegre privilégio de escrever o sumário no quadro. Isto é: vozes, movimento, Presente. De modo que a imagem se (me) acrescentou de significado: era a Morte no meu caminho, sim; mas havia também, entre mim e Ela, os meus alunos, as minhas aulas, o supremo Durante que somos enquanto podemos.

Uns anos depois, durante o jogging habitual, entre a piscina municipal e o quartel dos bombeiros ribeirapenenses, à passagem pelo portão de acesso ao mesmo cemitério do parágrafo anterior, fui interpelado por um senhor vestido de negro, muito idoso: “Eh! Eh! Escute!” Outra vez me ocorreu que aquilo era a Morte semioticamente chamando por mim. Parei e, talvez com maus modos e voz mais sonorosa do que o normal, perguntei: “Que se passa?” O homem mirou-me, pareceu desconcertado, desculpou-se: confundira-me com outra pessoa. Portanto, reflecti eu, sem desistir do simbolismo da realidade experimentada, mesmo que o Fim andasse à minha procura, não era (ainda) a minha vez.

 

Ribeira de Pena, 10 de Outubro de 2015.

[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 15-10-2015.]

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