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Número de Ondas

sábado, 26 de abril de 2014

O Mistério das Coisas Erradas, de Fátima Marinho


O meu colega Paulo Pinto emprestou-me o livro O Mistério das Coisas Erradas, de Fátima Marinho. Conheço a autora desde que ambos fizemos, há dois anos, parte do júri do Concurso Literário de Conto Infantil da Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto. Ouvira já, antes, referências elogiosas à escrita desta “cabeceirense” (adoptiva). Reencontrei-a no contexto de uma avaliação externa a que o Agrupamento de Escolas foi sujeito e em que Fátima Marinho participou como elemento da equipa inspectiva. Em todas as ocasiões, senti nela uma espécie de força feita de serenidade e lucidez invulgares. A sua escrita confirmou amplamente essa sugestão.
O livro O Mistério das Coisas Erradas é, do ponto de vista genológico, um conjunto de contos, pontuado epigraficamente por poemas. Contudo, os próprios segmentos narrativos incluem, sobretudo no final, apontamentos (comentários) de cariz profundamente poético, um pouco à semelhança do que encontramos, por exemplo, no final de capítulos dos romances saramaguianos.
A autora serve-se do barro da sua experiência enquanto professora para, de modo formoso e simples, nos relatar histórias de meninos e meninas que, devido às suas características específicas, saem do reduto confortável da “normalidade”. Para além de apontamentos humanos de altíssimo interesse, há nestas histórias margem para uma reflexão rigorosa e bela acerca da condição humana. Aprendemos (como a autora aprendeu/aprende) que é um erro e uma injustiça desistirmos de quem é diferente; que todos os seres são, a seu modo, versões da realização da Vida, igualmente dignas de atenção e de apreço; que um verdadeiro professor nunca deixa de aprender, incluindo com os seus (putativos) aprendentes; que a todo o momento podemos dar e receber, numa espécie de democracia ética e estética que não vem nos livros.
No capítulo “Com que calças andará o meru pequenote”, a professora/narradora (entre outras medidas) estimula uma criança, vítima de agressões diárias, a resistir e a sobreviver, até que o tempo o liberte do jugo de adultos indignos. O tempo, como sabemos, joga a favor de quem tem tempo.
Em “Cinco escudos”, a narradora percebe que uma criança fez uma promessa a Deus por si, isto é, pela sua professora. A criança, depois, irá querer saber se Deus satisfez o seu pedido, porque dessa circunstância resultará (ou não) o seu pagamento. Escreve Fátima Marinho: “A ternura vinda de mãos, supostamente, adversas à lentidão do afago espanta-nos […].”
No capítulo III, “O Mistério das Coisas Erradas” (que dá título ao volume), uma menina com trissomia 21, inicialmente vítima de incompreensão e desafecto e, depois, salva pelo amor de um familiar, aprende (ou intui), no usufruto da vida à medida do que a vida lhe oferece, que ”o mistério das coisas erradas é que também elas estão certas”.
Em “A fraqueza às vezes cresce e fica forte”, um menino cuja “deficiência” o condenara a nunca saber ler, segundo a cínica ciência dos rótulos, consegue salvar-se desse fado e lê.
Em “O Que São Mouras Encantadas?”, uma aluna apercebe-se da singularidade da professora e esta descoberta será ponto de partida para a narradora explicar à aluna que em todos os seres há, de facto, uma singularidade própria. E que todas as singularidades se podem irmanar, por exemplo, no gesto cósmico de olhar e namorar o mar.
Em “segredos”, uma criança sobrevive à brutalidade de vários abusos do pai (sobre si e sobre a mãe e irmãos) - e, depois, com o amor resiliente dos melhores seres humanos, perdoa.
Em “Ter asas e voar”, uma menina inspira-se no encanto da professora por colares de pedras e, querendo dizer o quanto ama a docente, recolhe duas pedras no caminho e guarda-as para lhas oferecer. A narradora guardou estas pedras e, sempre que necessário, interroga-as, nelas buscando a resposta para avulsas agruras do quotidiano. História(s) de amor, portanto.
No capítulo VIII, “Mas Será Que a Minha Colega Sabe?”, um rapaz convive com a sua “deficiência”, vencendo todas as limitações com denodo e dignidade. Evolui na vida escolar, para espanto de pessimistas encartados, e namora. O seu maior desejo: que a namorada nunca o visse como “deficiente”.
Em “Simplesmente Maria”, uma aluna quer morrer por sentir que ninguém gosta verdadeiramente de si. A professora/narradora explica-lhe, pacientemente, que em todos nós há momentos de desânimo, mas que, para além do “poço” momentâneo em que caímos, se encontra sempre a possibilidade de “flores na relva” e de “sol”. O contrário de morrer (ou de querer morrer) pode ser, como se vê, não estarmos sós.
No capítulo “Pastor, Pastorzinho, Porque Vais Sozinho?” (um dos meus preferidos), um menino, contra todas as probabilidades, aprende a ler e, desde esse momento, nunca mais está sozinho. Costumo dizer isto mesmo aos meus alunos sobre o encanto e o poder da leitura.
No capítulo “Juro Que Não Hei-de Ser Infeliz”, a personagem Dolores vence as suas limitações e singra na vida profissionalmente. Encontra, depois, um namorado, que é estrangeiro e lhe escreve em francês. A professora/narradora traduz os textos, mas a Dolores quer também ouvir en français as manifestações do amado: “-Só quero ouvir o som das palavras com que ele pensa em mim!” Escreve Fátima Marinho: “Interrogo-me se Confúcio, Dante ou Camões alguma vez terão pensado acerca do som das palavras de quem neles pensava. Na parte que me cabe, foi com a Dolores que aprendi a deter-me na ternura do som das palavras de quem pensa em mim.”
No capítulo “Para Onde Vai a Água?”, fala-se do Paulo, um menino que usava recorrentemente calão e maus modos na relação com colegas e professores, para além de se deslocar quase sempre em corrida de mãos abertas, como se voasse. Percebe-se que na criança, para além de cómodas explicações científicas sobre “deficiência”, colidem duas dimensões – a chã realidade da pobreza e da falta de afecto e a ânsia (secreta, mal percebida) de outros mundos para onde um ser humano possa (pudesse) voar.
No último capítulo, “Somos Filhos da Madrugada”, um aluno com (como se diz) “necessidades educativas especiais” aprende a gostar de música, revelando mesmo, em determinada altura, uma desconcertante cumplicidade com José Afonso (“o Zeca”). À música - como à arte, em geral - também se pode chegar simplesmente pelo coração.
Nota final: gostei mesmo muito deste livrinho.
Termino este apontamento com uma ideia que Fátima Marinho formosamente enuncia (e que, num outro plano, já encontrara em George Steiner): a de que a realidade é um processo, algo em constante devir, pelo que são frequentemente precipitados e erróneos os rótulos que os homens lançam sobre o que não sabem ou não compreendem bem. No poema que introduz (como epígrafe) o capítulo “O Que São Mouras Encantadas?”, lemos:
“Talvez o mar saiba
Que vida é um pedaço de silêncio
Guardado numa janela sem horizonte
Uma fonte perto da estrada
Uma caminhada
Ou simplesmente o vento
Onde correm os espíritos dos mortos
E a contradição de estarmos por aqui
Sem sabermos o segredo que nos trouxe…
Talvez as Mouras Encantadas existam por aí
E sejam elas a razão pela qual os pássaros voam
As flores rompem a terra áspera
As flores esperam que a felicidade espreite
Talvez amanhã…
Que hoje não estamos prontos para ser felizes.”

Também eu penso que a felicidade é isso mesmo: uma possibilidade, muitas vezes feita de simples instantes, que chega só quando estamos (verdadeiramente) prontos.

Ribeira de Pena, 26 de Abril de 2014.

Joaquim Jorge Carvalho

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