Bússola do Muito Mar

Endereço para achamento

jjorgecarvalho@hotmail.com

Número de Ondas

sábado, 12 de abril de 2014

O Macaco contado por Manuel António Pina

 
Sobre a mediocridade, senão indigência, de algumas personagens da nossa vida pública, sobretudo da política, já quase tudo terá sido dito. Mas, no caso daqueles deputados que, em enxurradas regulares, chegam ao parlamento, com a cartilha decorada e a cerviz pronta a curvar-se à voz dos chefes, vale sempre a pena puxar da pena e explicar-lhes muito bem a merda que são.
A última vergonha de que me recordo é a mudança de voto na questão da co-adoção por casais homossexuais. Passo por cima da hipocrisia mais óbvia - a de o discurso oficial de individualidades e claques colidir ruidosamente, em muitos casos, com a natureza verdadeira das suas personalidades e do seu modo de vida. Saliento, antes, a pouca importância que cada destes deputados atribui à sua consciência, facilmente vendida pelo conforto de uma cadeira parlamentar sob o nédio rabo. Vi alguns, coitados, embrulharem pobres explicações em má gramática e nenhum pudor - e em verdade vos digo que se enterravam ainda mais!
Tudo me veio, de novo, à lembrança ético-biliar na sequência de uma (re)leitura feita ao final da manhã, neste sábado tão formoso que me foi dado gozar - Queres Bodalo?, um livro escrito por Manuel António Pina e ilustrado por Pedro Proença (Lisboa, Ed. C.M. Lisboa/Museu Bordalo Pinheiro, 2005). Um dos contos intitula-se "O Pedido de Casamento", uma narrativa feita com base em bibliografia (passiva e ativa) sobre Rafael Bordalo Pinheiro. Neste conto, Pina fala de um macaco que, graças à sua esperteza, ao dinheiro e aos contactos que adquire na alta sociedade, se vai tornando importante, a ponto de obrigar os contemporâneos a esquecerem-se (ou a fingir que se esqueciam) da sua condição de macaco.
Até um pai, sabedor da aproximação do macaco à filha casadoira, esquece a indignação instintiva ("Um homem não, um macaco") e, tomando conhecimento da sua riqueza e das suas relações (a esposa dizia-lhe: "Um futuro ministro, Adalberto, um futuro ministro!"), acaba por ceder, não sem que certa empregada evidencie alguma estranheza ("olhando ainda uma última vez para trás, tentando descortinar como esconderia Basílio [o macaco] o rabo, se por dentro das calças se por baixo da casaca").
Eu creio que, na vida actual e pública, a cauda dos macacos se vê, com facilidade, na geral falta de ética e na lancinante pobreza da gramática e do vocabulário.

Coimbra, 12 de Abril de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho

Sem comentários: