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segunda-feira, 5 de novembro de 2012

VII Concurso de Conto Infantil - Discurso de Júri

    Fiz, uma vez mais, parte do Júri do VII Concurso Literário de Conto Infantil da Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto. A cerimónia de entrega de prémios decorreu no passado sábado, dia 27 de Outubro. Ficou a meu cargo a elaboração do discurso do júri. Como percebi, entretanto, que esse texto não aparecerá em qualquer (outro) meio de comunicação social, decidi publicá-lo aqui, no "Muito Mar", salvando-o da efémera existência a que, de outro modo, estaria votado.

Cabe-me a honra de, nesta ocasião, em nome do Júri do VII Concurso Literário de Conto Infantil de Cabeceiras de Basto - composto pela Dra. Adelina Pinto, pela Dra. Fátima Marinho e por mim próprio, Joaquim Jorge Carvalho, com a preciosa assessoria da Dra. Maria José Alves, bibliotecária -, fazer o discurso de apresentação formal dos contos vencedores, circunstância que aproveito para algumas outras (breves) considerações acerca da literatura e das artes, da cultura, da condição humana em geral.
Antes de mais, é de toda a justiça cumprimentar a Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto pela saudável teimosia com que, pela sétima vez consecutiva, leva a cabo este concurso. Numa altura em que os ventos económico-financeiros não são de feição, a aposta na cultura ganha contornos de especial relevo.
Numa bela crónica de Alice Vieira (por sinal, ela própria autora de créditos firmados na área da literatura infantil-juvenil), tomei pela primeira vez conhecimento de um episódio alegadamente passado com Winston Churchill, primeiro-ministro inglês durante a II Guerra Mundial. Discutia-se a iminência de fatais cortes no orçamento de muitos ministérios, de modo a concentrar-se a maioria dos recursos no esforço de guerra contra os nazis. Um assessor do estadista sugeriu-lhe que cortasse forte e feio nas verbas previstas para a cultura. Churchill não percebeu de imediato a sugestão e o assessor concretizou a sua ideia: de todos os orçamentos sectoriais, o menos prioritário, naquele contexto, era o da cultura. Churchill - que foi também Prémio Nobel da Literatura - respondeu-lhe (cito livremente):

- Esta nossa guerra é contra a barbárie, a ignorância, a brutidade. Se cortarmos na cultura, por que coisa estaremos a lutar?

Eis uma história que a muitos dos nossos governantes explicaria algo.

Um concurso literário celebra, logo à partida (e simplesmente por existir) a utilidade e o interesse da literatura. Deixai que vos fale um pouco deste amado tema.
Tive a oportunidade de, durante três anos, no âmbito de um Doutoramento em Literatura Portuguesa, estudar a obra de um grande escritor português do século XIX, Júlio Dinis, infelizmente nem sempre suficientemente valorizado pelo cânone literário português. Nos seus livros (sobretudo, nos seus contos e romances), destaca-se uma certa dimensão educativa que, pelo menos para jovens leitores, assume uma importância indiscutível. Não me choca a ideia de, associada ao relato de histórias, à enunciação de espaços e circunstâncias divertidas ou dramáticas, encontramos sábia e subtilmente edificados os valores da justiça, da honestidade, do empenho, dos sonhos, da bondade e da grandeza da condição humana.
Fará decerto sentido lembrar este aspecto muito recorrente na narrativa dinisiana (premiar o bem; castigar o mal) num discurso – como este - acerca de trabalhos inscritos na área do conto infantil. Aqui, ainda de modo mais claro, afigura-se fundamental que, concomitante às histórias narradas, haja uma componente educativa e, de modo geral, eivada desse optimismo humanista que podemos explicar como a possibilidade de, em cada momento, ser possível aos indivíduos a evolução e crescimento pessoal, a sempre possível redenção, a iniciática descoberta da virtude, a construção de um futuro mais agradável e mais justo.
No romance A Morgadinha dos Canaviais, de Júlio Dinis, há uma personagem chamada Manuel Bernardo (aliás, conselheiro Manuel Bernardo), que é o pai da Morgadinha. Este homem é deputado e, durante meses a fio, vive em Lisboa, onde está o parlamento, apenas visitando a casa da família em raras ocasiões (como o Natal ou as férias estivais). A sua vida é feita de intrigas políticas, tácticas, jogos de interesses, amabilidades convencionais, cobranças e cedências, cinismo utilitário. Em jovem, foi um idealista, com ideias muito claras sobre a honra, a ética, a justiça social, o progresso, um sonho de liberdade e de abastança gerais; ao dobrar os quarenta anos, tinha consciência das mudanças em si operadas, isto é, dos efeitos iniludíveis de alguma corrupção da alma, de alguma degradação do carácter.
Mas havia sempre um momento em que, despido das obrigações mudanas, sociais, político-partidárias, este homem se sentia novamente livre, puro, formoso: era quando entrava na casa da família, algures no Minho, e toda a existência regressava a uma simplicidade querida, bondosa, verdadeira. O homem, então, longe da hipocrisia da vida parlamentar, voltava interiormente a ser a pessoa que outrora fora e, já sem a preocupação das conveniências aparentes, era feliz, profundamente feliz.
Maria Irene Ramalho dos Santos (emérita professora de literatura na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra)  ensinou-me a dividir, de modo retoricamente muito produtivo, a nossa existência em dois planos – mundo político e mundo poético. Por mundo político, devemos entender o mundo da gestão da “polis”, isto é, o das rotinas necessárias que constituem as regras e os procedimentos da vida económica, da convivência social, do cumprimento dos nossos deveres e do exercício dos nossos direitos. Por mundo poético, devemos entender as pontuais fugas à normalidade cansativa e opressora, a prevalência do profundo (e, muitas vezes, adiado) amor sobre a fria razão, a perseguição do sonho, a autorização de momentos (pessoais, só nossos) de prazer e de beleza que não cabem no mundo político.
Precisamos do mundo político, claro: precisamos de alimentação, de roupas, de casa, de segurança, de serviços essenciais como a educação, a justiça, a saúde, a governança. Mas igualmente precisamos de mundo poético: de música, de pintura, de dança, de literatura, etc. – espaços de criação e fruição de beleza e de verdade, territórios da linguagem maior que nos diz e nos aumenta, nos distingue dos animais sem alma. Não sobreviveríamos, enquanto civilização, sem o mundo político. Mas também não viveríamos verdadeiramente sem o mundo poético, que nos oferece diversão, consolação, comunhão, beleza - e que igualmente permite a eterna celebração da nossa condição de humanidade.
Ao mundo poético, a este reduto querido de Manuel Bernardo, na Morgadinha (e nosso), eu gosto de chamar uma espécie de aconchego mínimo de que a condição humana essencialmente precisa. No plano da realidade física, haverá contextos específicos que garantam esta paz, esta felicidade (família, clube, amigos, desporto). Mas um dos mais seguros e eficazes territórios de felicidade que conheço é o do mundo das artes, entre os quais deliberadamente privilegio o da literatura e, em especial, o da narrativa.

A literatura é um território da língua em que a profundidade, a originalidade e o alcance da linguagem são maiores. E a narrativa compreende a ordenação do mundo (contar é ordenar); compreende a iluminação metonímica da vida; e compreende ainda a maravilhosa possibilidade de, escrevendo ou lendo, vivermos outras vidas.
Lembro aqui, à laia de formoso exemplo, o conto O Cavaleiro da Dinamarca, de Sophia de Mello Breyner Andresen. Essa narrativa assenta no sonho de um dinamarquês corajoso que quer ir à Palestina. Nós, leitores, vamos com a personagem e, através dos sucessivos episódios e histórias secundárias metidas na história principal, viajamos por lugares onde nunca estivemos e onde talvez nunca venhamos a estar; acrescentamo-nos de informação e de imaginação; percebemos melhor o mundo, a vida, a nossa própria condição de indivíduos com sensações, sentimentos e sonhos. No final do conto de Sophia, o Cavaleiro regressa a casa, não sem antes sofrer as agruras do caminho, os perigos da noite e a dureza do clima. De novo em casa, tudo parece regressar à normalidade, mas não: o Cavaleiro é outro, carregando no seu cérebro e no seu coração a memória dos lugares que viu, das emoções que experimentou, das lições que aprendeu. O mesmo sucede com os leitores que, acabada a leitura, regressam a si próprios, dessa viagem, indivíduos mais ricos, mais experientes, mais sábios.

A escrita de um conto implica a obediência (modal e genológica) a regras essenciais, directa ou indirectamente enunciadas, aliás, nos critérios de classificação tidos em conta pelo Júri. De maneira sucinta, diremos que o autor deverá ser capaz de, num número reduzido de páginas, edificar um contexto ficcional compreensível, coerente, tutelado por alguma espécie de lógica, ainda que diferente da lógica que na vida real conhecemos. E esse novo mundo, digamos assim, será o palco da história narrada.
Acresce que, neste caso específico do conto infantil, como já atrás se sublinhou, será conveniente que a um relato idealmente interessante de episódios corresponda uma concomitante e estratégica (ainda que subtil) intenção pedagógica. Poderá o público leitor, eventualmente, acrescentar ao prazer de conhecer/viver uma história extraordinária o potencial prazer de aprender (ou re-aprender) alguns conceitos, princípios e valores interessantes (a honestidade, a solidariedade, a tolerância, o respeito pelos mais velhos, a importância de tratar bem a natureza, etc.).
A esta luz, os contos que o Júri decidiu distinguir foram os que, de facto, mais corresponderam às exigências e expectativas artístico-literárias e genológico-modais do conto infantil. Tratou-se de uma tarefa exigente, esta, porque a avaliação do objecto literário comporta uma margem de subjectividade que, por muito balizada que esteja do ponto de vista dos critérios de classificação, tem sempre forçosamente a ver com o gosto de cada leitor(a). E, não obstante ser verdade que a nossa decisão foi relativamente fácil, por ter havido nos jurados uma rápida comunhão de pontos de vista, a verdade é que cabe aqui uma palavra de admiração e reconhecimento dirigida a todos os candidatos não premiados. Com efeito, outros contos interessantes estiveram a concurso - e o facto de não terem sido distinguidos com prémio não significa por si só que, no plano absoluto do mérito literário, sejam de menor qualidade; o escalonamento decorre da decisão de um Júri específico que, no exercício circunstancial da sua autoridade, fez as suas opções. Apenas isso.

(Entre parêntesis: eis por que razão é tão importante proceder, com regularidade, à renovação de um Júri de um concurso desta natureza – dar azo a que outras sensibilidades, outros ângulos de análise, outros gostos possam participar nestes concílios deliberativos.)

Foi atribuído o terceiro lugar ao conto “Fábula com fim incerto para um de dois moluscos terrestres”, da autoria de Ema Carreira, que assinou com o pseudónimo de Docelina. Trata-se de um conto bem construído, rico em termos de vocabulário e eivado de curiosos apontamentos irónicos (talvez nem sempre adequados a um público muito jovem). A história compreende uma aventura com um caracol e uma lesma e conclui-se com o castigo desta última personagem insuportavelmente vaidosa e arrogante. Contudo, esta dimensão edificante é talvez prejudicada pela severidade e crueldade da punição relatada (o caracol não encontra, na sua casca, lugar para a lesma e, indiferente ao sofrimento da desgraçada, deixa-se confortavelmente adormecer).
Este conto apresenta uma epígrafe de La Fontaine (“A fábula é uma pintura / em que podemos encontrar o nosso próprio retrato.”). O Júri apreciou a erudição, mas considerou dispensável a inclusão o paratexto no enunciado.
Foi atribuído o segundo lugar ao conto “Uma amizade para a vida”, de Isabel Maria Ferreira Bóia, assinado com o pseudónimo de Gabriela Evander. O texto (que perigosamente lembra um filme de sucesso intitulado “Um porquinho chamado Babe”) relata a amizade improvável entre uma menina e um porco. Logo no início do enunciado, a voz narradora sublinha o preconceito do pai de Aurora face ao animal: “Para ele, o porco só servia para comer. Onde já se vira um porco ser animal de companhia?”
Logo a seguir, a narração oferece-nos a visão (distinta, incomum, diferente) da filha: “Aurora não pensava como o pai. Para ele, aquele ser, por quem nutria um carinho especial, não era um porco, mas sim o seu Malaquias.”
É sobre esta base - a da diferença entre a ideia do pai face ao porco (uma ideia geral, fria, objectiva, assente na tradição e no olhar distante) e a ideia da filha (uma ideia que decorre de uma relação próxima, afectuosa, pessoal, subjectiva) – que se constrói o conto. Muitas peripécias conduzirão o pai de Aurora ao reconhecimento (ou aprendizagem) de que o porco, nesta história, era mais do que um simples animal para comer. Era, como dizia a filha, gente com nome (o “Malaquias”). A viagem – dificultosa e recheada de aventuras – é uma edificante jornada entre o preconceito e a verdade. Aquilo que, pelo coração, já a menina Aurora entendera (que a essência dos seres é mais importante que a sua aparência) é, no final da história, percebido também pelo seu pai.
Foi atribuído o primeiro lugar ao conto “Martinho”, de Flávio Miguel Fraga Silva, que assinou o seu trabalho com o pseudónimo Miguel dos Ventos. Numa primeira leitura, o texto parece não corresponder à forma tacitamente entendida como correcta, no universo convencional do texto narrativo – aparece em verso, constituindo-se de quadras nem sequer sempre perfeitas do ponto de vista da métrica ou da rima. Contudo, ao longo da leitura, o leitor é mergulhado numa aventura extraordinária, recheada de peripécias surpreendente e desconcertantes, ora divertidas ora dramáticas, explicáveis à luz de uma certa tradição de conto fantástico ou maravilhoso que nunca passarão de moda.
Numa segunda leitura, apercebemo-nos da condição eminentemente teatral do conto, que convida – pela leitura expressiva ou pela sua concretização em palco – ao velho mas sempre querido exercício da arte de contar histórias (consabida irmã gémea da arte de ouvir histórias). Martinho e o seu leão de brincar (verdadeiro na imaginação do rapaz e na lógica ficcional da própria história narrada) vivem uma odisseia que, em termos essenciais, provará uma verdade muito simples: “Aquilo que aprendi / Foi que nunca nunca mais / Voltarei a sair de casa / Sem dizer nada aos meus pais”.
Mas talvez essa lição (apenas um leve esvoçar pedagógico da narrativa) foi pretexto para uma rica, colorida, vertiginosa aventura que aportou ao enunciado diferentíssimos lugares, variadíssimas situações, estranhíssimas criaturas (com suas peculiaríssimas formas de falar). Na própria reunião final do Júri, propusemos que este texto fosse apresentado ao público de forma, tanto quanto possível, dinâmica, teatral, espectacular. Creio que esse desiderato foi tido em conta, como adiante se provará.

A terminar, uma nota talvez pessoa. Morreu, no final da semana passada, Manuel António Pina, ele próprio cultor da disciplina do conto, mas também do texto dramático e, sobretudo, da poesia. Descobri-o há uns doze anos e ele era (e é), para mim, acima de tudo, um dos maiores poetas da nossa contemporaneidade.
Costuma dizer-se, nestes casos, que a arte sobrevive ao artista. Julgo que este clichê, apesar de clichê, compreende uma efectiva verdade: Manuel António Pina ofereceu-nos, com a sua literatura, um espaço de excelência linguística, de beleza de raciocínio e sensibilidade, de iluminação – que durarão para lá da sua morte, para lá da nossa morte.
Pina, como artistas e escritores em geral, ofereceu-nos – à sua maneira – alguns territórios de aconchego (como os que referi no início este discurso). O melhor de si está nos livros que escreveu. Ele cala-se, agora, como sempre se cala um escritor para que, depois, possam falar os próprios textos, os próprios livros. Também é esse, em determinada altura, o dever do crítico de literatura.
Leio-vos, antes de me calar, um poema de Pina, intitulado – nem de propósito – “NA BIBLIOTECA”. Escutai-o, por favor, como tributo ao Poeta que morreu na semana passada e, obviamente, uma homenagem sincera à literatura em geral. Notai, por obséquio, esta nota (simples, mas essencial) sobre a indispensabilidade de haver leitores para haver livros – ou de não haver cantores nem canto se não houver quem o(s) ouça
O que não pode ser dito / guarda um silêncio / feito de primeiras palavras / diante do poema, que chega / quando já a incerteza e o medo se consomem / em versos alexandrinos. / Na biblioteca, em cada livro, / em cada página sobre si / recolhida, às horas mortas em que / a casa se recolheu também / virada para o lado de dentro, / as palavras dormem talvez, sílaba a sílaba, / o sono cego que dormiram as coisas / antes da chegada dos deuses. / Aí, onde não alcançam nem o poeta / nem a leitura, o poema está só. / E, incapaz de suportar sozinho a vida, canta.(Manuel António Pina, Poesia, saudade da prosa – Uma Antologia Pessoal, Assírio & Alvim, 2011.)
Calo-me enfim, para que fale, já a seguir, em discurso directo, o texto vencedor do VII Concurso Literário de Conto Infantil de Cabeceiras de Basto.
Parabéns à Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto pela iniciativa.
Parabéns aos premiados e, em especial, ao autor do trabalho que elegemos vencedor. Viva a literatura portuguesa. Viva Manuel António Pina! (E viva o professor Manuel Carneiro, que foi – e é – meu querido cúmplice em matéria de vidas e literaturas!)

Ribeira de Pena, 26 de Outubro de 2012.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.aterceira noite.org.]

1 comentário:

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Cara Rosa,
Por alguma razão (técnica) que não sei explicar, ainda não apareceu no blogue o comentário que gentilmente colocaste no texto sobre o VII Concurso Literário de Conto Infantil. Fica, contudo, desde já o meu aggradecimento. Beijinho. JJC