Bússola do Muito Mar

Endereço para achamento

jjorgecarvalho@hotmail.com

Número de Ondas

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Sísifo, ou o Tom Sawyer do Bairro do Brinca


O Tiago tem apenas oito anos, não lhe peçam para aguentar a missa dominical sem se distrair, bocejar, protagonizar espasmos de impaciência. Aproveita tudo para se ocupar mentalmente, enquanto o senhor padre debita a homilia e o povo corresponde mecanicamente às suas deixas. 
Foi o caso da migalha que uma formiga transportava, naquele Domingo, entre a décima fila de bancos (a contar do altar) e a base de uma coluna encostada à parede direita (para quem entrasse), um pouco à frente da pia baptismal. Interessou-se logo pelo esforço titânico do insecto, à bulha com um pedacinho de pão que tinha o dobro do tamanho do minúsculo ser. Pobre e brava formiga, suportando o peso da comida, a irregularidade do piso, feito de cimento e ladrilhos cheios de poeira ou cotão, o barulho ambiente, composto de vozearia humana, às vezes em rezas uníssonas, outras de tosse, manifestações de catarro, suspiros.
Tiago percebeu que o objectivo da formiga era chegar a um pequeno orifício que mal se vislumbrava, mesmo no início da coluna. Apoiou-a mentalmente, como se ela fosse uma atleta do seu clube preferido, talvez em luta por um título mundial. Quase no final da cerimónia, a multidão de crentes agitou-se. As pessoas murmuraram “Amen” e o padre autorizou-as a sair: “Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe.” Umas dezenas de pés cruzaram, em tropel rumo ao exterior da nave, o caminho da formiga, pisando-a ou empurrando-a.
O Tiago ficou para trás. Segundos depois da debandada, já não havia sinais do insecto nem da migalha transportada, naquele meio metro de teatro trágico. A mãe percebeu-lhe a tristeza nos olhos:
- Que foi, filho?
Ele disse:
- Nada.
Quem soubesse o que acontecera nos últimos vinte ou trinta minutos, no solo da igreja, perceberia bem o que o rapaz queria dizer com a sua resposta. (Está bem, o narrador explica: referia-se ao resultado do esforço da formiga.)

Arco, 14 de Janeiro de 2019.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, na net.]


Sem comentários: