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sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Sarita e a estações


Como diria Skármeta, o mundo é metáfora do mundo (podia ser: as vidas são metáforas da Vida). Sarita, a moça de Lisboa que, segundo o jornal, foi presa em Coimbra pelo roubo de dois relógios numa grande superfície comercial, lembrava-se de ter acordado com muito frio. Era ainda Outono, mas aquela ventania gelada que assobiava da porta para o interior da casa assemelhara-se a um comboio anunciando-se ao longe: vinha aí o Inverno. 
Pergunta: quantos invernos há em cada vida? Muito mais do que os do calendário biográfico, diria Sarita, a julgar pelos desgostos variados e constantes dos últimos quarenta anos: o Pai, que a defenderia para sempre, morreu-lhe tão cedo que nem viu a filha comungar pela primeira vez; a Mãe, que era o abrigo maior, entregou-a à avó pouco depois de enviuvar, fugindo a seguir com um professor qualquer do Algarve; o Avô, que poderia ser uma espécie de pai alternativo, abusou de si, e nem ele nem a avó perdoaram à neta a denúncia pública daquela indignidade; o namorado engravidou-a antes de ela ter vinte anos e, logo que tomou conhecimento do nascituro, fugiu para França. Uma vida, diria a Sarita, cheia de Inverno. 
As drogas tinham chegado como uma espécie de intervalo, aparentemente solar, que prometia interromper o frio e o abandono anteriores. Mas, como ela própria depois admitiria, ao médico do Hospital da Universidade de Coimbra, não eram afinal senão novas invernias. Ainda por cima, caras. Tão caras que a levaram à prostituição e ao roubo, duas vergonhas que, vistas à luz da necessidadezinha, significavam só a possibilidade de dinheiro rápido. 
Naquela tarde, a Sarita morria de dores. Desde bastante cedo, sentira a agressão do pior dos frios dentro do seu mundo. Sem sucesso, mendigou dinheiro a vizinhos e a turistas transeuntes, ofereceu serviços de sexo a um ucraniano das obras, prometeu a um dealer pagar-lhe mais tarde a querida dose. Entrou no supermercado pelas três da tarde. Cirandou pela ala dos perecíveis e pela ala dos indiferenciados. Viu os relógios, estimou-lhes o preço, recolheu dois (agachando-se e escondendo-os no interior das sapatilhas). Ficou tudo filmado pelas câmaras de segurança. 
No tribunal, quando lhe falaram de prisão, encolheu os ombros. A juíza enunciou as vantagens da desintoxicação e da reintegração na sociedade: 
- A senhora tem filhos? 
- Tenho uma, mas não a vejo há mais de vinte anos. 
- Se eu a deixar sair com pena suspensa, promete-me que vai mudar? 
- Não sei. 
- Não sabe ou não quer? 
- Não sei. 
A juíza revelou impaciência. 
- Preciso que seja mais concreta na sua resposta. Diga-me o que vai fazer a partir de agora… 
- Vou esperar que se acabe o Inverno, doutora juíza.


Ribeira de Pena, 11 de Janeiro de 2019. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em https://pt.dreamstime.com.]

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