Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Pretérito menos que perfeito


Nos iniciados e nos juvenis, o Jota era uma razoável esperança. Na categoria de juniores, era já um dos melhores jogadores da equipa. Driblava como um esquiador, corria como uma gazela, lutava como um guerreiro. “Aquele talvez venha a dar futebolista!”, vaticinavam os adeptos do União de Coimbra ao senhor José, o Pai daquele advérbio de dúvida. 
Com o prestígio, veio a vaidade. O Jota começou a guardar a bola só para si, a regatear esforços na recuperação defensiva, a exigir privilégios especiais (marcando os cantos e os livres indiretos), a exibir mesmo trejeitos de vedeta cinematográfica. 
Às tantas, o próprio treinador, seu amigo verdadeiro, viu-se obrigado a corrigir-lhe o posicionamento tático e a displicência competitiva. Foi a uma quinta-feira, e o Jota reagiu aos reparos com arrogância: 
- Bolas! Só me vê a mim?! 
O treinador chamou-o à parte e afiançou-lhe, gravemente: 
- Eu só chamo à atenção jogadores que ainda não saibam tudo sobre o jogo e tenham a possibilidade de melhorar. Quando eu achar que já sabes tudo ou que não conseguirás melhorar, deixo de te aborrecer. Compreendes? 
O rapaz ficou em silêncio, remoendo as palavras como um medicamento. Depois, cumpriu a ordem de correr à volta do campo durante uma hora, enquanto os outros jogadores se divertiam no treino de conjunto, divididos em duas equipas. 
Uns vinte anos depois, durante uma aula de Português, o professor Jota lembrou a um aluno a necessidade de melhorar a sua atitude face à escola. À interpelação do director de turma, o discente reagiu assim: 
- Bolas! Só me vê a mim?! 
E o docente transmitiu-lhe a lição do mister Raul Pinho, concluindo: 
- Se eu deixar de te aborrecer, é sinal de que já és perfeito, ou então de que não vale a pena tentar melhorar-te porque não serves para mais. 
O aluno focou em silêncio. Sabei que o silêncio é, às vezes, a banda sonora da aprendizagem. 

Ribeira de Pena, 08 de Janeiro de 2019. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[Na imagem, foto do autor, então capitão dos juniores do União de Coimbra e já recuperado da vaidade supra-narrada.]

2 comentários:

Paulo Pinto disse...

A sabedoria quase sempre chega com a idade. O diabo é que os jovens podem mas ainda não sabem, e os mais velhos sabem mas já não podem. Li isto em qualquer sítio… Um abraço, professor J!

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Faz muito sentido o que dizes - embora não se nos aplique, modéstia à parte, certo?

Abraço, Amigo!