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Número de Ondas

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

A literatura do senhor Morris

Aí por 1963, os maiores tesouros da cidade de Cloudland eram um conjunto de livros muito antigos. Havia poucos, fruto quase todos de edições únicas, o que os tornava mais valiosos que ouro, terras, casas ou gado. O administrador da pequena biblioteca municipal tinha a incumbência de, entre as nove da manhã e as sete da tarde, os guardar, os conservar em bom estado e, nas raras ocasiões em que eram disponibilizados a professores ou estudantes, vigiar o modo como eram manuseados. Uma década antes, o funcionário tinha-se licenciado em engenharia civil com vinte e três anos de idade e desprezava as humanidades. Aos vetustos livros de matemática, de ciências naturais, de física, de química e de medicina, chamava livros do conhecimento. Aos centenários livros de histórias, de versos ou de teatro, que arrumava na prateleira inferior da única estante da sala, chamava livros de tretas. 
Certo dia, a biblioteca foi assaltada: levaram todos os livros e, no dia seguinte, fizeram chegar ao mayor um pedido de resgate. A verba pedida era altíssima e, se satisfizesse o pedido dos bandidos, o mayor teria de desistir de duas estradas novas e de um hospital que há pouco começara a ser edificado. O senhor Morris, o bibliotecário, foi também consultado sobre o que fazer. Com o sentido prático da engenharia, propôs que se pagasse apenas uma parcela do resgate, prescindindo-se de uma parte significativa dos livros sequestrados – “a literatura da treta”, cujo valor não se comparava, em sua opinião, com “a literatura do conhecimento”. Mais por motivos económicos do que literários, a câmara concordou com a proposta e, para surpresa da polícia e da administração pública, os ladrões também. Uma quantia razoável foi então depositada numa conta internacional, um caixote apareceu nas traseiras da sede dos correios - e os livros de matemática, de ciências naturais, de física, de química e de medicina regressaram, enfim, à biblioteca. 
Dir-se-ia: a vida regressou à normalidade. Mas não. O bibliotecário conheceu, no início da Primavera seguinte, uma senhora francesa, bolseira da Sorbonne, que viera aos Estados Unidos fazer uma investigação sobre os primeiros colonos (em particular, sobre a influência da cultura francesa na construção da identidade americana). À primeira conversa, o senhor Morris sentiu no peito uma espécie de dor, semelhante a um ataque cardíaco, um fogo no rosto e uma inexplicável felicidade pelo facto de estar na presença da estrangeira. Habituou-se a ouvi-la falar como se a sua voz se tratasse de uma música nova. Tornou-se dependente do seu perfume e admirador da sua pele muito branca. Começou a ver, em qualquer paisagem por onde andasse, marcas do seu rosto perfeito, do seu cabelo loiro, dos seus olhos azuis-verdes, do seu busto citrino. Em termos de engenharia civil, aparecera-lhe na alma um edifício grande e sólido, sem plano prévio, nem escala, nem infra-estruturas que se vissem, ainda por cima em trânsito para a condição de arranha-céus. O amor. 
A estrangeira achava o senhor Morris boa pessoa, mas não o amava. Em Paris, estava outro homem, médico do nariz, dos ouvidos e da garganta, a quem entregara há muito o coração. O bibliotecário tentou aproveitar o gosto da mulher pelas ciências e exibiu, sempre que pôde, nas conversas com a estrangeira, o seu conhecimento de toda a antiquíssima literatura que guardava. A interlocutora ouvia-o, interessada, mas sem um frémito que revelasse uma migalha sequer de correspondência amorosa. 
Morris foi dando em doido. A vinte e cinco de Junho, data de aniversário da amada, quis fazer-lhe uma surpresa. No dia anterior, adormecera na biblioteca, no final de um choro romântico e de duas literais garrafas de vinho argentino. Acordado, fizera a possível higiene matinal, endireitara como pudera a indumentária e dera um toque ao cabelo, ciente de que, pelas nove horas e meia, apareceria a deusa aniversariante. Ela tinha-lhe dito, certo dia, que gostava de receber flores. Naturalmente, o bibliotecário, queria, naquela ocasião, oferecer-lhe flores. Sem tempo para sair, teve uma inspiração maluca: foi-se à estante onde estavam os livros e foi rasgando folhas e mais folhas, com as quais esculpiu pétalas, troncos, ramos. 
O resultado, para além da destruição de trinta e quatro volumes muito antigos de matemática, de ciências naturais, de física, de química e de medicina, foi que a sala principal da biblioteca se tornou numa espécie de jardim em papel, com flores espalhadas por mesas, estantes e cadeiras. Esta mistura de páginas de uns livros com outros resultou em sociedades de palavras verdadeiramente improváveis e surpreendentes: por exemplo, numa das rosas fabricadas, lia-se “equação de energia cardiovascular”; noutra, lia-se “estrela venosa por efeito de combustão do olhar humano”; noutra ainda, lia-se “raiz quadrada da fauna e da flora do universo”. Etc. 
- Não sabia que eras um poeta – disse a estrangeira, beijando-o, esquecendo-se escandalosamente do seu otorrinolaringologista francês. 
- Nem eu – confessou o bibliotecário. – Até chegares, era só engenheiro civil. Isto foi uma coisa que me aconteceu. 
De modo que a literatura feita de versos, de histórias e de peças de teatro, roubada ao segundo parágrafo por marginais (e desprezada pelo município), regressou assim à biblioteca da cidade, em forma de flores. Em forma de amor. 

Ribeira de Pena, 09 de Janeiro de 2019. 
Joaquim Jorge Carvalho 
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em https://www.antiguidadeslisboa.pt.]

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