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Número de Ondas

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Os ausentes


Solipsas tinha traços semelhantes ao bisavô paterno, um grego com olhar triste, vindo de Atenas para Espanha, e depois para Portugal, há talvez um século. 
Quando se sentia mais deprimido ou bêbedo, Solipsas punha-se a filosofar ali pelo largo fronteiro à igreja de Santa Cruz: 
“A morte, vista pelos vivos, não existe. Os mortos, vistos pelos vivos, não estão bem mortos, uma vez que são recordados. A morte existe apenas no sentido de uma momentânea ausência, como a viagem de um tio para a Alemanha por umas dezenas de anos.” 
Sucedeu que, no meio da filosofação, deu de caras com o Adérito, um amigo antigo, já da remota escola primária do Loreto, tido por falecido há umas duas décadas. 
- Estás vivo?! – perguntou/exclamou o Solipsas, esbugalhando os óculos. 
O Adérito garantiu que sim e deu-lhe um abraço. Ofereceram-se logo as respetivas biografias (o Solipsas era reformado da CP, divorciado e só; o Adérito já era avô, tinha dois filhos em França, vivia em Braga com a mulher e trabalhava ainda nos correios - estava de passagem por Coimbra, por causa de um caroço nas costas, coisa ruim, mas que haveria de passar se Deus quisesse). 
A tarde foi passada a celebrar o grande reencontro, numa tasca pequenina, ali à rua da Sofia, que cheirava a fritos de muitos séculos. O Adérito só bebia água, o Solipsas dava-lhe no vinho, lamentando não ter telemóvel nem números para contactar outros amigos de antigamente. 
- Iam gostar de te ver, ó Adérito! É que andou mesmo por aí o boato de que tinhas morrido, acreditas? 
Muito conversaram: sobre a professora primária tão severa e histérica, e sobre as mulheres fatais daquele tempo, e sobre futebol, e sobre os que se casaram e se divorciaram ou enviuvaram, e sobre a família que tinham tido-que tinham-que deixaram de ter, e sobre a corrupção dos bancos. No final da tarde, o Adérito teve de regressar a Braga. O Solipsas mal se despediu, pois o vinho e a euforia tolhiam-lhe a língua, a visão, o equilíbrio, até o entendimento. O dono da tasca assegurou ao cliente sóbrio, com mal disfarçada impaciência: 
- A gente põe o seu amigo lá fora, não se preocupe. Isto às vezes acontece-lhe. 
No dia seguinte, o Solipsas acordou com o odor a café que vinha da cozinha da pensão. Rosa Luz, a empregada mais antiga, rosnou-lhe que tivesse vergonha, que visse o estado do quarto, e que pior estivera, antes de ela o limpar, o chão do corredor. O hóspede garantiu-lhe que não se lembrava sequer de ter regressado, e era sincero. 
Mas a luz da manhã retemperou-lhe o corpo e o ânimo. Saiu para a rua e foi deitando olhares indecentes às pernas de uma mulher que, como ele, esperava o autocarro para a baixa, a um par de namorados claramente alienados do planeta e respirando em uníssono, a um velho cão que cheirava o mijo de contemporâneos da sua espécie, a um cigano seu conhecido que limpava os sapatos às calças julgando que ninguém estava a ver, a dois polícias num carro parado e à espera de transgressões motorizadas. Até que chegou, enfim, à tasca onde encontrara o Adérito. Ainda por lá sentia, de certa forma, a presença do amigo, e por isso sorria, sem que os outros clientes percebessem a lógica daquele esgar zigomático. À roda de um garrafita de vinho e de um arroz de tomate com carapaus, voltou a filosofar, rabiscando depois a filosofação num caderninho azul que costumava trazer no bolso lateral do casaco: 
“A morte, vista pelos vivos, não existe. Os mortos, vistos pelos vivos, não estão bem mortos, uma vez que são recordados. A morte existe apenas no sentido de uma momentânea ausência, como a viagem de um tio para a Alemanha por umas dezenas de anos.” 
Passaram-se semanas. Numa qualquer tarde de Novembro, tocaram-lhe no ombro: era o Vasquinho, seu colega de escola e do futebol no União de Coimbra, criatura que de vez em quando tresvia no quotidiano urbano. O Vasquinho estava furioso com o árbitro do dia anterior e o Solipsas logo lhe atirou, pela milésima vez: 
- Por que raio és do Sporting? Muda para quem ganha, pá! 
Depois, lembrou-se do Adérito. 
- Sabes com quem estive há nem sequer um mês? Com o Adérito… O filho do Manuel Padeiro, dos Olivais, lembras-te? 
- Ah… - murmurou o Vasquinho. – Coitado. 
- Pois, eu sei… Tem um problemazito de saúde. Vive em Braga. 
- Já não – disse o Vasquinho. – Morreu na semana passada. Veio no Diário de Coimbra
Nessa noite, o Solipsas vomitou à entrada da pensão e fez um escândalo, a altas horas da madrugada, defendendo em altos berros a inexistência de Deus. 
Horas depois, já bem acordado e barbeado, veio ao seu quarto a dona da pensão. 
- Precisa de alguma coisa, dona Eugénia? 
Ela queria convidá-lo a procurar, tão depressa quanto possível, outro poiso para morar. 
- Tenho pena, senhor Solipsas. Mas você não tem emenda. 
- Tenho, tenho – garantiu-lhe o hóspede, fingindo que não estava assustado. 
Desceu, à tarde, para a baixa. Antes de passar pela tasca habitual, admirou as pombas da Portagem, as estudantes em formoso trânsito pela rua Visconde da Luz, a empregada da pastelaria, a tão linda Sé Velha, vista de cima, iluminada pelo Sol. À mesa, voltou a lembrar-se do Adérito e escreveu no caderninho azul que tirara no bolso: 
“O Adérito não está morto, segundo percebo. Vive lá por Braga, simplesmente.” 

Ribeira de Pena, 10 de Janeiro de 2019.
Joaquim Jorge Carvalho 
[Foto JJC]

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