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Número de Ondas

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (71)





Ao encontro de Aquilino
 
Numa carta ao dr. Brito Camacho, datada de 1926, em jeito de nota prefacial para o livro Andam faunos pelo bosque, Aquilino Ribeiro tece algumas (preciosíssimas) considerações sobre o ofício de escritor. 
Entre diversas pérolas que ali nos são oferecidas, destaco as afirmações acerca do trabalho de revisão. Defende Aquilino, como Torga, que se trata de uma tarefa incessante: “Não julgo um livro produto estático na carreira do profissional das letras. Antes o suponho o que o jardim é para o jardineiro e a lição para o didáctico. Ano por ano, um e outro enxertam, podam, corrigem. Edição por edição, o escritor, sequioso de aperfeiçoamento, pode trepar um degrau nesta dolorosa e infinita escada de Jacob que é a arte literária. Numa palavra, um livro para mim é como as pedras que Deucalião atirava para trás das costas e se convertiam em almas; podem desamparar-se almas?
Toca-me também o que afirma sobre a independência do trabalho criador: “O que fiz é honrado: não plagiei; não extorqui a jóia mais humilde ao mais invulgar dos escritores; não cedi às correntes que hoje são cortejos triunfais, amanhã depenadas Danças da Bica. Perdurei o que sou por temperamento, e adquiri por educação e algum estudo. Confesso essa soberba. Escrevi com o meu sangue; nunca molhei a pena na pia da água benta, nem nos lavabos perfumados das viscondessas.
Finalmente, impressiona-me o sumário crítico que faz da sociedade do seu (nosso também) tempo: “Compu-lo [ao livro] com a linguagem que, juvante Deo, amanhã me há-de servir para pintar o que por aí abunda: quebra-esquinas, banqueiros que vendem a alma e venderiam a pátria, se fosse veniaga ao seu alcance, mulheres que arremedeiam a francesa na moda e na moral, sábios balofos, políticos sem vergonha nem ideias, e uma que outra pessoa de bem.
Tenho andado a reler Aquilino Ribeiro (A casa grande de Romarigães, O homem que matou o Diabo, Andam faunos pelos bosques, Quando os lobos uivam, Batalha sem fim), confirmando que se trata de um escritor maior. Abençoado Amigo Paulo Pinto, devoto aquiliniano, mui exemplar apóstolo do (seu) autor preferido! À sua boleia me achei viajante por literatura tão vivíssima e tão portuguesíssima. E é um prazer, com a madurez dos cinquenta anos (upa, upa), dar-lhe razão e devir cúmplice do seu credo.
Razão tinha igualmente o meu saudoso professor Gouveia, docente de Português na Escola Rainha Santa Isabel (Pedrulha, Coimbra), aí por 1975, quando nos assegurava, enquanto líamos o Romance da Raposa, que o senhor Aquilino Ribeiro era uma espécie de Camilo do século XX.
E do século XXI, digo agora eu.
 
Ribeira de Pena, 15-01-2017.
Joaquim Jorge Carvalho

[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, ed. de 19-01-2017.]

2 comentários:

Paulo Pinto disse...

Sernancelhe foi a minha primeira colocação enquanto professor. Conheci (e tive alunos d') a aldeiazita onde nasceu Aquilino (Tabosa do Carregal), e a aldeia-santuário onde teve os primeiros estudos (Srª da Lapa). Lugares rudes, agrestes. Lugares de silêncio. De pedras antigas. E de cheiros, de urze, alfazema, sei lá o quê, que nunca encontrei em nenhum outro sítio. Nunca tinha lido Aquilino, só uns excertozitos em manuais. Comecei a lê-lo, reconhecendo os lugares que ele nomeia e regionalismos que ele usa e eu ouvia da boca dos habitantes, e fiquei logo enfeitiçado. A maneira como ele, que estudou, foi para Lisboa, se tornou um cidadão do mundo e até um activista político, retrata as Terras do Demo onde cresceu. Nem uma visão idílica, nem distanciada, nem amarga, nem bucólica, nem crítica. Uma perspectiva de alguém de dentro mas com toda a sabedoria do mundo. As personagens falam um Português arcaico e rústico, mas correcto, e o narrador utiliza um vocabulário e uma erudição fora de série, mas sem uma sombra de afectação ou de inverosimilhança. Nota-se o respeito por essa gente rude, o valor dado à sua inteligência e engenho, sem iludir a sua rusticidade. A acção progride quase sem nos darmos conta, por entre descrições de lugares reais, de uma natureza agreste e omnipresente, e uma análise psicológica profunda das personagens. Não diminuo ninguém, de outros grandes romancistas, e escritores em geral, que tivemos. Eça, Camilo, Dinis (e é graças a ti que voltei a dar-lhe o valor que merece), Vergílio, Torga... Mas até hoje, ao lê-los, não consigo ver neles um génio como o de Aquilino que, nas suas melhores obras (e para mim essas são os seus romances «regionalistas»), vai para além do mero talento literário, de bem escrever, de usar o diálogo com mestria, ou de saber criar um ambiente ou retratar personagens. Os outros são humanos, Aquilino tem uma centelha de divino. E não esqueçamos onde ele nasceu e cresceu, no meio de fragas e rudes pastores analfabetos. A partir de Lisboa ou do Porto, onde sempre estiveram os editores, os críticos literários e a maioria dos leitores, entre prédios, academias e tertúlias, é impossível compreender a obra dele; por isso, talvez, Aquilino teve o respeito mas não o total reconhecimento da sua obra, e ainda hoje não ocupa o lugar que, no mínimo, merece a par com os maiores. Considero uma bênção ter trabalhado em Sernancelhe, e a seguir em V. N. Paiva (que aparece, nos romances aquilinianos, com o seu antigo nome de Barrelas), em plena Serra da Nave. Sem isso ter-me-ia passado ao lado, a mim que nem sou particularmente inclinado à leitura dos clássicos, ou ficaria intimidado com a prosa difícil e os nomes estranhos. Ainda bem que te fiz olhar a obra de Aquilino Ribeiro com, talvez, mais atenção... Agradeço-te o teres empreendido essa viagem. Abraço!

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Obrigado pelo teu belíssimo comentário, Paulo.
Ocorre-me, relativamente à noção de " autor regionalista" (que Aquilino não estimava) uma frase maravilhosa de Torga: dizia o autor de BICHOS (cito de cor) que "o universal é o local sem muros". E esta ideia assenta como uma luva - também - a Aquilino.

Abraço aquiliniano, Amigo!

JJC