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terça-feira, 3 de janeiro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (68)


O que sobra de 2016

A memória é um acto (desesperado, creio) contra a mortalidade. Celebramos datas para irmos evitando o Fim mais definitivo de todos – o esquecimento. A ironia disto tudo está em que, assinalando nascimentos ou conquistas, óbitos ou aniversários, é sempre na morte que estamos a pensar (esconjurando-a, lamentando-a ou fazendo de conta que ela não nos vence).
Serve este lúgubre preâmbulo para vos falar do término de 2016, um pouco influenciado pelos múltiplos balanços que os média vão publicando, com maior ou menor interesse. A cerca de uma semana do seu ocaso, eu atrevo-me a ver neste ano moribundo uma terrível colecção de catástrofes: terrorismo global, pandemia de guerras, doenças cada vez mais numerosas e rápidas do que tratamentos & curas, recrudescimento da intolerância, banalização da corrupção, perpetuação da fome, da desigualdade, da exploração.
Apesar do pontual alívio que foi ver-me livre daquela austeridade tão cara ao dr. Passos Coelho, não vejo motivos, no hodierno contexto, para grandes optimismos. Prefiro mil vezes a geringonça à fúria neoliberal, sim, mas continuamos à mercê dos caprichos dos credores internacionais, do preço do petróleo, da generosidade do Banco Central Europeu. A América mais primária elegeu um pedregulho primário e perigoso. O Reino Unido inventou um problema terrível para a (periclitante) União Europeia. A França parece tomada pelo vírus populista da xenofobia mais retrógrada. Entre muitos mortos que contabilizámos ao longo do ano, temo o falecimento da própria Esperança…
Sobra-me que a minha Mãe ainda está viva no momento em que escrevo e que Portugal foi campeão europeu de futebol. A essas gratas circunstâncias vou buscar a melodia com que gostaria de terminar esta crónica. Eu estava em Coimbra nessa magnífica noite de Julho, com a minha Mulher e a minha Filha. Cantámos o hino em pleno jardim da Associação Académica, unindo as nossas vozes às de milhares de outros. Éramos ali, muito juntos, os mais felizes parolos do universo, vestidos com as cores da selecção, uns lingrinhas pátrio-futebolísticos à espera do milagre. Eu (disseram-me) tinha as mãos na cabeça e chorava estupidamente depois do golo do Eder, o empregado de mesa do Café mais próximo trouxe-me uma piedosa imperial e, batendo-me nas costas com sincera preocupação, aconselhou-me calma. Por umas inteiras duas horas, andei em romaria pela cidade com os outros automobilistas, apitando, cantando, abraçando cúmplices desconhecidos que encontrava na rua. No final da noite, ainda fui dar um beijo à minha Mãe, que tinha passado o serão à varanda a bater palmas aos foliões transeuntes. Disse-lhe: “Mãezinha, foi um dia perfeito!”
O ano de 2016 foi muito mais - e sobretudo muito pior - do que isto. Mas cada um celebra o que (e como) lhe parece justo.

Vila Real, 20 de Dezembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 22-12-2016.]

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