Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (72)



Elogio da rotina
 
Se o prazer da rotina for exclusivo dos velhos (do que eu duvido), é porque sou idoso desde a mais tenra infância. Tal não significa eu gostar de tudo quanto, ao longo dos rotineiros dias, ocorre. Aos seis anos, já me custava muito acordar cedo, já me doía profundamente a ideia de trabalhos de casa (cópias, contas), já me era um suplício ir ao supermercado da dona Cilinha, pelas seis da tarde, comprar pão, ovos, fruta. O que havia de prazer na rotina talvez nem eu o percebesse nessa meninice dourada: era uma espécie de eternidade, fundada na renovada repetição de tudo, que representava (digo-o agora) um Presente para sempre. 
Aí por 1983, morreu-nos uma tia muito velhinha, que vivia numa aldeia chamada Lavacolhos, irmã da mãe da minha Mãe. Apercebi-me, à noite, de um murmúrio triste, que se estendia da minha casa à de tios, primos, avós, e às casas de outros familiares espalhados pelo país. Impressionou-me o negrume das indumentárias que homens e mulheres vestiam no dia seguinte. O encontro de todos deu-se num Café próximo de minha casa, havendo exclamações de quem não se revia há muito tempo, e risadas, e brindes com cerveja, vinho e vermute, e chocolates para a miudagem. Parecia uma festa, pensei, mas não era senão a preparação da viagem rodoviária, em familiar frota, rumo ao funeral.
A boa disposição desapareceu à chegada à aldeia: gritos, suspiros, silêncios pesados substituíram as anedotas do tio Vítor ou os atrevimentos femeeiros do meu Pai. E vi, de chofre, o caixão aberto – uma velhinha serena, de mãos cruzadas sobre o peito, dormindo eternamente, na mais doce indiferença pelo choro à volta. Custou-me muito entender a irredutibilidade daquele estado, não apenas o facto de aquela senhora (que eu já vira falar e sorrir, pelo menos uma vez) não mais existir, mas a ideia de toda a gente estar destinada àquela mesmíssima terminação.
Passei a amar ainda mais desesperadamente a rotina em que morava. Era-me desconfortável a circunstância de todos fazermos anos e de passarmos de classe (ou de mudarmos de escola). Não suportava o fim de uma série televisiva (Espaço 1999, Bonanza, Casei Com Uma Feiticeira), a reforma de um jogador do Sporting, a mudança de emprego do Pai. Queria profundamente que nada mudasse – e murmurei, certa noite, aos miúdos meus contemporâneos, no recato inseguro das escadas do prédio: “O que mais desejo é que os meus pais nunca morram.”
Tenho aperfeiçoado, ao longo de décadas, este culto da rotina, aproveitando dela o que tem de melhor: de manhã, pago-me a dor de acordar com o prazer do banho; adio o trabalho da tarde, à hora de almoço, com jornais ou livros, degustando café e às vezes um bolinho; ensino os meus alunos como se aprendesse (e vice-versa), alimentando-me, enquanto envelheço, daquela juventude eterna de todas as turmas; falo com as pessoas que amo tantas vezes quanto posso; ao entardecer, compro diariamente o pão e a fruta, beijo a mulher, e depois janto com a satisfação de um milionário em núpcias num hotel paradisíaco; já refastelado, à lareira, leio um romance de Aquilino (ou O Ribatejo); televejo um pouco de Family Guy ou de Uma Família Muito Moderna, na Fox Comedy; tomo os meus prudentes comprimidos (para a diabetes e para o colesterol); e enfim durmo o sono tranquilo das vidas remediadas e honestas.
É verdade que, nos intervalos da melodia desta vida linda, há acidentes, interrupções, ruído, abalos. Por exemplo, o telefone toca e já não há o Pai vivo. Mas, a cada crise, procuramos refazer-nos, recuperar o equilíbrio, tentar que a vida regresse a alguma normalidade. À rotina.
A rotina, como eu a vejo, é a eternidade possível.
 
Coimbra, 21 de Janeiro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 25-01-2017.]
 

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