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Número de Ondas

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (69)



 A generosidade explicada ao burguês

Caros leitores, deixai que erga, nesta madrugada ainda do novo ano, uma questão incómoda: até onde estais (estamos) dispostos a ir pela justiça, pela verdade, pelo Bem?
Há mais de vinte anos, numa conferência a que assisti, na Escola Secundária de Pombal, sobre a situação do povo timorense, sob o jugo – à época - da Indonésia, uma senhora fez-me (fez-nos) essa mesma pergunta. Era uma mulher baixinha, de gestos serenos e voz melodiosa, que perfumava o discurso com um misterioso sotaque, num Português cheio de distância e cumplicidade. Agradeceu o apoio luso à causa de Timor livre, os nossos cânticos, a nossa poesia, as nossas palavras de ordem nos corredores da escola ou nas ruas, o nosso dinheiro. Mas perguntou: “E se fosse preciso recolher uma família timorense fugida da repressão? Quem estava disposto a tal gesto?”
Houve ali um silêncio embaraçado. O meu (pareceu-me) era o que se ouvia melhor. Repercebi ali a minha burguesa covardia, o pânico de perder o conforto remediado da minha existência, a angústia de sair da doméstica rotina que secretamente busco desde sempre. Para maior vergonha deste que vos fala, alguns colegas e muitos alunos ainda gritaram que, sim, eram capazes de acolher nos seus lares os timorenses necessitados. Admirei-os (admiro-os), mas não fui capaz de os imitar.
Quase no final de 2016, antes de viajar para a consoada coimbrinha, conversei com uma colega sobre o significado da palavra “generosidade”. Ela saiu-se com esta: “As pessoas generosas são generosas porque sim.” E desenvolveu a ideia: “Porque, em dados momentos, acham que têm de fazer o que não pode deixar de ser feito. São generosas naturalmente.”
A este axioma tão pragmático acrescentou um exemplo. Ela própria, há cerca de oito anos, acolheu em casa três meninas, provindas de famílias disfuncionais. As três irmãs beneficiaram, pela primeira vez em suas tenras biografias, de um ambiente familiar saudável e digno. Tinham regras, roupa, refeições, banhos, carinho, paz. Impressionadas com aquela Mãe provisória, as senhoras da segurança social propuseram-lhe a adopção de uma das crianças. A minha colega hesitou, fez contas ao seu tempo e ao seu dinheiro, reflectiu (com a cabeça e sobretudo com o coração) – e acabou por ficar com as três. São as suas três filhas, como legitimamente diz. A mais velha já anda na universidade. Compreendei: o preço da opção é muito maior que todos os euros já gastos ou a gastar no futuro; é a obrigação para sempre contraída de eleger as três meninas como prioridade da sua existência, abdicando de outras hipóteses de bem-estar e de conforto (também legítimos, sublinho). E ela diz que não acha isto “generosidade”, como eu, espantado, lhe chamei.
Regresso à minha questão inaugural: até onde somos capazes de ir pelo Bem? 
E pela interrogação me fico, para não dar confiança a excessos masoquistas que me estraguem os dias. Feliz Ano Novo, amigos! 

Coimbra, 01 de Dezembro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 05-12-2017.]

2 comentários:

Paulo Pinto disse...

Na falta de algo de jeito para dizer perante uma situação tão humanamente embaraçosa, mas sem querer deixar de reagir, ponho um «like». Abraço e um feliz ano novo.

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Paulo, my Friend, I like your comment. Hug!