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Número de Ondas

sábado, 14 de janeiro de 2017

ZONA DE PERECÍVEIS (70)





Mário Soares: contra os Catões, marchar, marchar

Custa sempre ao cronista a queda no tema mais previsível de todos – na circunstância, a morte de Mário Soares e a importância histórica de tal personalidade. Mas desta vez, confesso, nem sequer me esforcei para o evitar. Adiante.
Eu tinha 10 anos em 1974, quando nos chegou aquele dia belo e iniciático de Abril. Ao longo dos seguintes dias, meses, anos, beneficiei de um curso aceleradíssimo de Política, Economia e História. Soube o que era, afinal, o fascismo, o comunismo, a social-democracia, a pide, o Tarrafal, o colonialismo, a liberdade de associação-expressão-escolha. Muitos protagonistas daquele período passaram a fazer parte da minha linguagem diária – e, entre tantos, destacavam-se os de Otelo Saraiva de Carvalho, Salgueiro Maia, Mário Soares, Álvaro Cunhal, António de Spínola, Costa Gomes, Sá-Carneiro, Freitas do Amaral, Vasco Gonçalves, Ramalho Eanes, Melo Antunes, Dinis de Almeida, Rosa Coutinho. Etc.
Cresci com a convicção de que eu era “de esquerda”, por me parecer formosa e justa a exigência da redistribuição da riqueza de um país, a igualdade de oportunidades em matéria de saúde, educação e justiça, a cultura da solidariedade social. Ajudou o facto de ser filho de operários e vizinho da zona industrial de Coimbra, testemunha privilegiada de tantas lutas e manifestações populares.
Passei, nesta minha meninice democrática, pelo encantamento panfletário do comunismo e, aí pelos meus 12 anos, cheguei a afirmar-me “do MES - Movimento de Esquerda Socialista”. Mas a sobrevinda leitura de programas partidários, de jornais e de livros ajudou-me a perceber que em nenhum caso abdicaria da minha liberdade individual e de uma certa ideia de burguesa propriedade (não me entrava na cabeça a obrigatoriedade de ser o Estado, à frente dos descendentes familiares, a herdar o que um homem conseguisse com o seu trabalho). Finalmente, conquanto me parecesse essencial o papel do Estado na regulação da sociedade, desagradava-me a sua omnipresença tutelar, feroz e judicativa.
Mário Soares foi, durante muito tempo, uma amável referência do meu mundo. Ao contrário de outros compatriotas (que, já adultos, aparentemente não se deram conta de viver num regime fascista e, por isso, jamais se revoltaram), este homem sacrificou uma vida confortável à luta pela democracia. Pagou por tal o preço da perseguição, da prisão, da tortura e do exílio. Depois do 25 de Abril, ajudou a evitar os excessos revolucionários contra, por exemplo, a Igreja, e combateu a exclusão do Partido Comunista Português, integrando-o no sistema democrático. Quando se anunciava a possibilidade de novas ditaduras (de esquerda ou de direita), foi sempre dos primeiros a lutar pela liberdade, pela tolerância, pelo pluralismo.
Já reformado da política partidária, talvez mais livre do que nunca, deu-se ao luxo de ser radical e de radicalmente denunciar a agenda neoliberal de Passos & Associados, a deriva autoritária e cínica da Europa, a desumanidade de uma globalização esquecida das pessoas.
Tenho ignorado, com estóica paciência, a baba raivosa de jotinhas e ex-jotinhas da direita ignorante, que insultam, no cadeirão do Facebook, a memória de Soares. Pior: constato que até alguma esquerda também por aí liberta ventos de incompreensão e de ressabiamento venoso. Mas quero, desta tribuna livre de onde vos falo, celebrar o cidadão Mário Alberto Nobre Soares, o verdadeiro fundador político da nossa democracia.
De Fernando Pessoa, que bebia de mais e acreditava em horóscopos, o que me interessa é a sua literatura genial. De Soares, que não foi um santo de pau carunchoso, ficou-me o direito – inalienável e extensível à minha Filha e às gerações vindouras – da maiúscula Liberdade. Por muito que os Catões da vida gemam, esperneiem e espumem, isto não é herança de somenos.

Vila Real, 07 de Janeiro de 2017.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 12-01-2017.]

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