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Número de Ondas

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (56)


Olha o robot

 Numa crónica publicada no DN em 1971, com o título “História sem palavras”, a escritora Maria Judite de Carvalho dá conta do seu desconforto (aliás, angústia) perante um quotidiano cada vez mais dominado pelas máquinas. Queixa-se sobretudo da falta de comunicação entre as pessoas, resultado da nova lógica que tutela a urbana rotina: uma espécie, digo eu, de pulsão para uniformizar e mecanizar a vida dos humanos. Nesta nova modalidade de existência, não há tempo para conversas particulares ou para pessoais partilhas de ideias, emoções, sentimentos. Maquinalmente obrigadas a sobreviver, as pessoas já não se dão ao luxo antigo de conviver.
Entre o grito da cronista e hoje, passaram-se 45 anos. Registo, com tristeza, que a ameaça reportada no texto se concretizou: do mundo com gente e palavras sobra muito pouca coisa. Pela Escola onde trabalho, cirandam jovens de telemóvel na mão, alienados desde manhã cedo. Quando saem pra o intervalo, já de aparelhos em riste, lembram-me os fumadores da minha infância, esses que, quando a camioneta excursionista parava numa estação de serviço, sofregamente corriam para a rua, desesperados por umas passas de carbono.
Em Ribeira de Pena, por causa dos incêndios, estivemos quatro dias sem serviço de internet, de telemóvel e de televisão por cabo. Entre as queixas gerais, as mais exasperadas eram as de adolescentes e jovens adultos, que se sentiam náufragos, mergulhados (ai deles) nesse moderníssimo síndrome de abstinência – da falta do facebook, do twitter, do instagram. Para matarem o tempo, imagino, alguns tiveram mesmo que dialogar de viva voz com os pais, os irmãos, os avós, os vizinhos.
O mundo globalizado pôs máquinas a cobrar-nos a conta do hipermercado e as portagens. Telefonamos à EDP e quem nos atende é uma voz pré-gravada, enunciando frases como um robot cínico. Tendemos a ser versões digitalizadas de nós mesmos, desprovidos de carne, de ossos, de amor. Diria, a pensar na internet e nas prisões em geral, que devimos cardumes cegos sem alma para fugir da rede.
Maria Judite de Carvalho achava que, em 1971, se vivia já no Futuro e, em remate mineral da sua crónica, anunciava: “Não gosto.” Tendo sofrido quase 50 anos da brutidade seguinte, eu digo-vos agora que também não.
 
 Vila Real, 25 de Setembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de 29-09-2016.]

3 comentários:

Paulo Pinto disse...

Li o teu post (é assim que se diz?) e concordei logo. Admirei também a clarividência de Maria Judite de Carvalho. Sei que muitos, sobretudo jovens, vivem num mundo virtual e pouco convivem ou conversam, não lêem, etc. Também não gosto disso. Ia começar a escrever qualquer coisa a compartilhar o desconforto e a angústia acerca dessa alienação que por aí grassa. Mas depois lembrei-me de quando tinha 8, 10, 12, 15 anos, e não tinha irmãos, primos, avós ou mesmo vizinhos da minha idade, e o diálogo com os meus pais depressa se tornava um diálogo de surdos, numa casa onde não havia visitas. Chegava a passar três meses sem comunicar com ninguém, folheava o atlas do mundo e jogava damas e xadrez contra mim mesmo horas a fio, dias a fio. As férias eram a tortura, e a televisão (e, quando aos 14 anos passou a haver em casa um leitor de cassetes, a música) eram os únicos escapes. A falta que me fizeram a Internet, os telemóveis, os chats, os faces e toda essa alienação! Hoje posso até estar (e estou) ao lado de quem deplora o que a dependência da tecnologia está a fazer às relações humanas, mas também sinto na pele que a nossa própria experiência afectiva tantas vezes se impõe na maneira como olhamos o mundo.

Anónimo disse...

Na sequência do que escreveste quero acrescentar algo em que tenho pensado há uns tempos: e que tal se em vez de nome próprio fossemos logo identificados apenas, e só, pelo n.º de identificação fiscal? Afinal nascemos para sermos futuros contribuintes... parece não haver qualquer utilidade em ter um n.º de identidade e o nosso nome... talvez a vantagem deste seja apenas para aqueles que têm mais dificuldade em fixar tantos números.
Até uma próxima!
RGC



Joaquim Jorge Carvalho disse...

Caro Paulo (Amigo),
Compreendo os teus argumentos. Mas sinto-me sinceramente apavorado com alguns sinais do "Futuro". Leio neles uma espécie de voragem desumanizadora, logo embrutecedora. Tenho dias em que, por muito optimista que queira ser, só vislumbro esta modernidade escrava dos telemóveis, i-phones, tablets e raio que os (nos) parta.
Abraço!
JJC

Caríssima Rosário (Amiga),
A espécie de caricatura que referes já não anda muito longe da realidade, como sabes. Para "dourar a pílula", os operadores de call center começam por nos perguntar o primeiro e último nome, mas imediatamente nos solicitam números, códigos, etc. É assim - mas é triste!
Bj.
JJC