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Número de Ondas

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

ZONA DE PERECÍVEIS (53)


Lá no fundo

O papa Ratzinger chamou, em tempos, a atenção do mundo para o problema do “relativismo moral”. Sublinhava que, por muito complexa que seja a realidade (sobretudo, os modos de ver a realidade), era fundamental manter bem definidas as noções de certo/errado, justo/injusto, verdadeiro/falso. Os relativistas deste mundo, em resposta ruidosa, avisaram para o perigo de olhar para a vida com esta singeleza minimalista, lembrando que a existência humana compreende muito mais cores e tonalidades do que o preto & branco elementares.
Respeito ambas as visões. Também eu creio que a humanidade é, pela sua própria natureza, um eterno mistério, matéria de infinitas nuances e de mirabolantes surpresas (que raramente se repetem e nunca cessam, caso a caso, de nos espantar). Mas Ratzinger faz bem em realçar o facto de, não obstante, os seres humanos precisarem mesmo de algumas referências basilares, de sólidas balizas éticas, de espartanas “certezas” que sejam chão e horizontes essenciais para uma vida digna.
Assassinar alguém não pode, por mil motivos que se vomitem, estar certo. Oprimir, privar outros da liberdade, corromper (ou deixar-se corromper) não é, por mil ginásticas argumentativas que se aduzam, aceitável. A porcaria do racismo não se torna, por muito que se enquadre, contextualize e explique (à boleia de psicólogos, psiquiatras, políticos, politólogos, juristas, taxistas, costureiras, futebolistas, famosos da televisão, vizinhos com empregos importantes, etc.), aceitável ou lógica.
Há sempre quem diga, acerca do maior facínora da aldeia (ou do bairro, ou da cidade, ou do país, ou do mundo, ou da História universal), que o indivíduo, “lá no fundo, era boa pessoa”. Ora, li eu no Google, há um pequeno peixe chamado “peixe-ogro” (anoplogaster cornuta), talvez o mais feio de todos os peixes, que vive nas maiores profundezas do oceano e tem uns dentes verdadeiramente assustadores, bem como presas semelhantes às de um vampiro. Era, creio eu, ao pé deste camarada com barbatanas que a humanidade mais canalha deveria estar. Lá no fundo.

Ribeira de Pena, 05 de Setembro de 2016.
Joaquim Jorge Carvalho
[Esta crónica foi publicada no semanário O Ribatejo, edição de o8-09-2016.]

3 comentários:

Paulo Pinto disse...

Há um tipo singular de diálogo de surdos, que é aquele em que alguém diz que é preciso ter em conta a necessidade de comer e logo alguém contrapõe que está errado, pois há outras coisas importantes além de comer. Entre o comer para viver e o viver para comer vai uma grande diferença. Do mesmo modo, balizar a nossa existência por algumas referências normativas, éticas ou mesmo religiosas não significa negar a incerteza ou a relatividade de tanta coisa na vida. As religiões, como os sistemas filosóficos e as ideologias, têm a utilidade de fornecer «certezas» que confortam as pessoas e contribuem para melhorar o mundo, desde que bem canalizadas e temperadas pela tolerância e pelo sentido de humor. Já no que se refere às profundezas abissais tenho mais dúvidas, pois uma coisa é o acto e outra coisa é a pessoa que realiza milhões de actos voluntários ao longo da vida; julgar os outros é inevitável e mesmo necessário (não se pode tolerar o crime), mas, no sentido mais profundo, não é apenas difícil, é um verdadeiro abuso das nossas faculdades humanas.
Um abraço, JJ.

Joaquim Jorge Carvalho disse...

Caro Paulo, leio sempre com atenção (e admiração) o que escreves. Creio que, neste caso, tomaste como literal a ideia de remeter para as profundezas quem, por maldade ou estupidez, me (nos) incomoda. Contudo, a ideia era mais singela (e leve) - significava a minha falta de paciência para, no pressuposto de que "lá no fundo" até o Diabo tem as suas virtudes, indagar, reflectir, ponderar, compreender e, quem sabe, amar os racistas, os fundamentalistas-terroristas, etc. Não. Se "lá no fundo, são também bons", pois que lá no fundo fiquem - e viva eu à superfície sem eles. Abraço! JJC

Paulo Pinto disse...

Caríssimo, literalmente a ideia era inexequível (a pressão esmagaria os tipos antes de conhecerem o simpático peixinho), mas daria jeito haver ainda uma Austrália distante ou um arquipélago desabitado no Atlântico para exilar os piores exemplares. Tenho estado a ler (com agrado e saboreando bem as páginas) o teu livro e ocorre-me que, se em Júlio Dinis não há facínoras, talvez isso se deva ao facto de nesse tempo ainda haver maneiras expeditas e eficazes de se livrarem deles: a pena de morte estava já em desuso e seria abolida ainda no tempo do escritor, mas locais para um degredo definitivo não faltavam. Ou talvez, simplesmente, algumas coisas que nos repugnam hoje não chocassem os contemporâneos dele. Mas, como os do tempo dele não podem já fazer-nos mal, resta-nos inquietar-nos com os de agora, e tantos que eles são. Que fiquem bem lá no fundo, longe de nós se possível,,, inch'Allah! Entra no ano lectivo com o pé direito, bro!